segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Quando Não Entendo

Não entendo como se forma o que nem se vê, como não se vê o que está bem na frente; talvez forjamos que não vemos, nos protegemos, ou talvez a coisa se esconda – mas não vemos e não entendemos e não sabemos como seria se fosse diferente. Talvez meu pecado seja este: querer decifrar o incorpóreo, sendo que o corpóreo é também invisível – quando nos aprofundamos, a coisa some e não é mais. Fosse, saberíamos que não passamos de uma idéia. Sou o princípio de alguma pobreza apropriada, sem fim, sem luta nem resto. Sou inodor porque vivo apenas nas minhas fantasias. E brinco de ser e de não entender. Brinco de existir quando na verdade insisto. Sofro pelas dores não-sofridas, busco no outro a minha dor. Busco no outro o eu que não enxergo, e nem no outro enxergo, pois o outro é outro e não eu. O que é eu? O que completa o que não é eu?
Precisamos esquecer de quem somos ou queremos ser para poder entender. Enquanto acharmos que o mundo se divide entre platéia e público, assim será. Pois então que ninguém me exija definir o indizível, que ninguém queira ver o que não vibra na freqüência dos olhos, que ninguém queira ouvir sentimentos difusos, que ninguém busque em pés alheios a própria nudez. Meus pés descalços guardam consigo a minha própria timidez. Isso é meu segredo. Para outros, os pés são do outro. Só para mim meus pés são meus. Gargalho. Procuro sempre no terceiro o meu primeiro e se eu aceitasse em mim a minha nudez, ninguém mais seria nu. Teremos vergonha o dia que descobrirmos isso. Ao passo que a vergonha não será mais temida.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Noite

“Uma porta só pode ser aberta se estiver fechada” – disse W.
Mas J sabia que aquilo era uma besteira. O homem chegara na lua, por que não poderia abrir uma porta aberta?
“Lógica” – respondeu W.
Que lógica existe em se despachar num foguete, pisar num terreno cratecnoso, cravar uma bandeira e depois voltar com risco de explodir? A cachorrinha deve ter rido de nós.
“Ora, não argumente contra a lógica.” – finalizou W – “se hoje estamos aqui, é por causa dela”.
E J não argumentou, apesar do sofisma que chafurdara em seus ouvidos. Entrou no seu quarto e fechou a porta, pois ela estava aberta. Fechou a janela, ligou o ar-condicionado. Mas não fechou a cortina. A lua é bonita lá no céu. Ninguém sabia, mas à partir do momento em que ele a enxergava ela era só sua. Seu enfeite. Sua instância. Não via bandeira nenhuma. Lógico, pensou.E, embora não soubesse como abrir uma porta aberta, JW, naquele momento, abraçava o mundo.

Mas há a alegria

Mas há a alegria. A alegria mansa que abarca inteiramente e não nos assusta porque é sutil. É nessa alegria que o sentido se faz quando não há razão nenhuma à mercê da ignorância bruta. Essa alegria não se apresenta, oi, como vai, é como fogo que não se vê e nem se toca, apesar de arder por dentro, porque é apenas um estar no mundo.
Há uma alegria que se dá quando não se sabe que se é alegre. Quando se pensa que está sendo alegre, não se está mais. Por isso essa alegria gera tensão depois que se foi alegre com ela. Pois causa a dor da perda. Mas essa alegria é um risco do qual estamos, e ainda bem, reféns; eu, você, qualquer um, quer queira quer não, pode ser a ingrata próxima vítima dessa alegria, quando conheceremos as glórias abstratíssimas e o descaso do não-merecimento. E, apesar de tudo, não adianta fechar-se a essa alegria. Quando presente, é infalível. E sempre vem. Mesmo nos mais rancorosos e nos que não se permitem. Ela pula a guarita e tem o dom da surpresa. Pode-se chamá-la quase de infantil, mas, em verdade, ela é boba o suficiente para ser mal de adultice.
Vivo nessa alegria o quanto posso ser eu, e nesses instantes não há mais nada a ser procurado e nem pensado, e nada pode escapar pelos dedos. Ela aparece justamente quando nos distraímos de querer pegar tudo com os dedos. Por isso, não é aconselhável tentar pegá-la com os dedos: o resultado pode ser desastroso: sorrisos armados, piadas mal-feitas, intenções ecoadas a esmo. Na verdade, a alegria mansa a que me refiro jamais escapa pelos dedos. Nós é que a sobrepomos com nossas tensões e o nosso medo do fim da festa: quando se estouram os balões e, sem querer, sangram junto os corações.
Mas, bem, há, de fato, a alegria: e ela é só cama elástica quando nos lambuza. Basta esquecermos de nós e nossas cobranças. Basta não inventar desculpas para que nossas cobranças não sejam esquecidas. Ela também não é reduzitível, ou somalizável e nem se pode contá-la no jantar, pois seus princípios são meio risíveis. Às vezes uma criança chutando um poste, um mendigo de guarda-chuva, um sapato furado, ou um domingo todo bebível. Enfim, imprevisível. Essa alegria aparece na empatia de um bom encaixe: quando a perfeição se antecipa de ser perfeita. E por isso perde a sua conotação traduzível. Gosto, gosto muito das alegrias sem motivo.

Fragmento

O hoje me deu vontade de sonhar com flores. Que medo que eu tenho de sonhar com flores! Como o desespero de olhar para o céu para verificar se ele ainda está lá. Conferir o azul do céu me prova que ainda estou. Mas o que prova que sou? Ah, estes sonhos... Temê-los é a expressão máxima de ser. Tal qual o céu. Que vontade de ser flores sem sabê-lo.

Beato

Odeio filhos abraçados,
Odeio as expressões fotografadas,
Tenho ódio dos cabelos de chapinha.
Odeio as inversões sempre avisadas,
Odeio estômagos embrulhados,
fingindo de amigáveis.
Odeio olhares ensaiados,
Odeio o pódio dos inocentes,
a fumaça dos cérebros
prepotentes.
Odeio o mijo dos leões,
demarcando o que é

porque disse que era.
Odeio as falas entre aspas
com ares baforados,
Odeio a força oculta
dos elefantes temerosos.
Odeio, e admito, tudo o que
me denuncia:
que me foca fraco
e humilhado.
Odeio, e sempre, não ser
tão bom quanto o meu ódio.
Odeio e não sei como
que de tanto ódio
por tudo isso
surge tanto amor
por tudo isso.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Todas as pedras

Taca-me todas as pedras.
Dá-me todas as almas.
Furiosas e tão calmas
quanto
um açúcar
de uma cana ceifada.

Taca-me todas as pedras
porque delas
tirarei um néctar
que não
compreendes.

Esconde agulhas nos meus tapetes
para que não desfile.
Só não me ensines a andar.

Só não me ensines a nadar.
Só não construas muros por mim.
Só não amorteças demais as minhas quedas.
Para que me doa.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Convulsões

Roga, abusa, rouba, casa;
Aprisiona, insiste, demarca,
Insiste, insiste,
Queima, queima,
Insiste: amolda;
Escuta, ouve, fala, tenta.
Desliga, guarda, cala, some;
Pisa, pensa, repensa, despensa,
Tinge, picha, foge, esconde;
Omite, finge, ofusca, entorta.
Engloba, expande, atinge, desiste.
Apaixona, ousa, lambe, morre,
Urge, volta;
Retorna, contorna, desemboca,
Desembucha, murcha,
Treme, sente, pisca;
Estica, estica, estica;
Crava;
Atrita, atrita, contorce,
Alonga, permanece;
Mira, foca, relaxa.
Renega, mente, transmite, aprecia,
Olha, recua, olha, invade.
Avança, balança, arrepende,
Avança;
Ama, baba, expande, cala;
Beija, afaga, suja;
Sonha;
Teme, teme, teme;
Junta,
cola, teme,
quebra;
Ultrapassa, acelera;
Lava, seca, passa;
Veste, calça, penteia, cheira;
Anda, corre, pára, bebe;
Prova;
Lê, enxuga, deleta;
Rebola, solta, doa, cansa;
Come, come, come;
Muda, retoma, abjura, concorda,
Masturba;
Infantiliza, debocha, gosta,
Pechincha;
Esnoba, inibe, guarda, retém,
Senta, pega, amassa, rabisca,
Ri, entretém, diverte;
Silencia, aguarda, espera,
Provém, assiste, engole,
Seca, entope, racha,
Briga, culpa, odeia, espuma;
Arranha, puxa, mostra;
Revela, entrega, perdoa,
Convence, seduz;
Aperta, afrouxa;
Aperta, afrouxa;
Constrói;
Relaciona;
Bate, brinca, morde,
Associa, rompe, inova;
Pinta, pula, canta,
Goza, deseja;
Almeja, revê,
Desenrola.
Exemplifica, delega, enrosca;
Vive e pensa,
Pensa e vive;
Vive e brocha.
Cria.

À Emergência de Um Grito Qualquer

Estou hoje à emergência de um grito qualquer. Que não fosse minha inconsistência e minha incompetência em ser um grito, talvez eu fosse mais meu e menos do vento. Mas meus olhos insistem no sufoco de não poder voltar para dentro, de modo que a minha vivência se dá ao contrario da minha busca: vou de fora para dentro, com todo o concreto arrumado e todo perfume delgado denunciando o que é externo e incapaz de me pertencer.
Sei, entretanto, que toda essa dor é fruto de um apego mesquinho e rudimentar: moldar o abstrato com as mãos: senti-lo e transforma-lo ao bel-prazer. Besta que sou, na unilateralidade atolada, que preciso antes desfazer-me do egóico para então ser livre e então terei olhos dentro apenas porque dentro será uma referencia apenas sentida. Sou todo emoção, mas escapo antes de sê-lo, pois uma vez assumido firmo um compromisso com o sentimento sentido e essa responsabilidade seria a morte de todas as minhas pretensões. Estou a emergência de um grito qualquer, preso que estou, tentando derrubar paredes a gritos e virar os olhos para ver se atravesso meu muro e descubro que por trás dele há o melhor de mim que respinga cego em ainda não ser. Mas sei que minha consciência ainda brincará de surpresas e sobressaltos. Pensar que posso ser surpreendido por mim me mantém acordado todos os dias. E rezo para o sol. Que não sou eu. Mas me acusa quem sou, espécie única.

Meu Tempo

Meu tempo de maturação é indefinido e impenetrável. Não sou nada enquanto ele. Portanto não exijam de mim respostas se inda não as tenho. Meu trabalho comigo é incansável e eu já estou cansado dele. Mas é assim que funciono: me parasito até extorquir-me e obter-me o melhor abuso. Pois dessa lambida seca, que se torna um lixar agudo, é que vou me despedaçando e me reconstruindo. Não tenho como colocar-me no casulo, nem como depois ejacular-me a mim mesmo, mas no meu tato as coisas se sentem sem cardápio.
No meu tempo de maturação, as palavras perdem seu valor matemático. Pois quando falo céu, invariavelmente imaginamos aquela coisa azul que enxergamos ao inclinar a cabeça, estamos estritamente presos à imagem que fizemos previamente do céu. Mas isso, para mim, na minha possível maturação, é irreconhecível. Pois quero falar de céu como uma vastidão que funciona sozinha, como um limite que expande mas sempre teme a queda, quero colocar no meu céu o meu desconhecido, a minha amplitude remunerada, quero invadir no meu céu como um lado meu sem teto nem chão, quero que o meu céu seja sexo e poesia, ou gula e vitória, ou prazer e claridade. Sei também ficar preso no céu: recalcitrante, sei aprisionar-me nas minhas idéias imprecisas e não-numéricas: feito pássaro batendo na janela: me perco de mim no meu céu.
Quando estou nos meus momentos, não me dôo, apenas absorvo, cínico. Sou desorganizado e desatento. Sou patético e grosso. Não sei pensar no mundo quando não tenho certeza de mim. Não posso jamais apertar parafusos alheios enquanto estou frouxo e desengonçado. Preciso respirar e resguardar o que tenho de mais tuberculoso.
E quando meu tempo de maturação acaba, sou obtuso e nem me lembro mais. Me aguardo a cada instante, e cuido de mim porque também sou amor. Nesse tempo, me reconstituo e me tomo com calma e prazer. Mas um prazer poético. Quase estético. Só me resta o vazio bom, aquele que talvez tenha vindo à custa de dor e apego, mas que depois reboa bem saudável no peito, como uma velhice sábia e justa. Acolho e não temo mais temer-me.
No meu tempo ou fora dele, sou o que sou. Não por uma escolha escolhida, mas por uma atenção dirigida.

sábado, 1 de setembro de 2007

Lugares

Um dia deixarei de frescura e seguirei o caminho até a estrela mais próxima. Guiado pela minha intuição e levando apenas minha predisposição. Chegando lá, repousarei um pouco e voltarei ao nosso planeta. E não contarei a ninguém.
Voltarei a vida normal; isto é, voltarei às aparências: e é fácil viver só de aparências: então vou deixar meu coração naquela estrela e seguir vivendo.
E de vez em quando, quando der saudades de mim, retornarei ao caminho que adivinhara e visitarei a estrela. Só para respirar um pouquinho. Farei isso todos os dias que me forem necessários. E lá ficarei vagando em encontro absoluto. Criarei algumas fórmulas, inventarei filosofias, redescobrirei a física quântica, e ainda trabalharia em projetos pessoais. Definiria todos os sentimentos humanos e intuiria os sobre-humanos também. E seria tão sábio e calmo que frutificaria todo apenas pela constância. Ai de quem me espiasse pois não veria nada. Lá eu cresceria como as árvores. Não seria julgado e nem abandonado: não haveria separação entre eu e nada, e então eu amaria como nunca se amou: sem gesto e só em silêncio.
E conforme for voltando, estarei mais e mais íntegro. E as pessoas e a crueldade – tão terrenas – não irão me abalar tanto. E estarei imune aos males pequenos: não porque tenho anticorpos, mas porque serei confidente íntimo de cada vírus. E a distância entre a estrela e a Terra irá cedendo naturalmente. Como o sorriso que se afrouxa nos lábios: traz pra perto. E poderei ir mil vezes. Até que seja uma coisa só. Babo só de pensar. Mas não contarei pra ninguém. Como a fórmula de um perfume invejado. Será meu segredo.

sábado, 25 de agosto de 2007

Em Nome do Filho

As emoções interrompidas são aquelas que trazem uma necessidade.
Eu não gosto de ter que ser melhor do que as pessoas que eu amo.
Mas eu sou.
E isso me trás uma culpa que só é acalmada quando levo um esporro.
Daí é como se eu me encaixasse em mim;
Viro uma luva cheia de humanidades, o que me trás um alívio lubrificado.
É quando fico quieto, aproveitando que me encontrei.
Coro, tímido.

O Nosso Comedido

No final das cartas havia um nome mudo. Gostava de lê-lo e de pensa-lo. Na mesa havia respostas perturbadas. Havia esperança contorcida, ressalvada pela luz da lâmpada seca. Criava sombras. Gostava mais das sombras do que dos sonhos.
Fantasmas pairavam e brincavam de gritar sem ninguém ouvir. Mas alguém ouvia. Pois quem grita, grita a si próprio. E este, seja quem for, ouve. Poderíamos viver desligado dos outros? Afinal, a visão é tela, o ouvido caixa e a consciência um projetor? Somos, então, um cinema? Que angústia é ver um filme e não poder sê-lo! As luzes se acendem, mas na verdade se apagam. E queda qualquer coisa que cala profundo: a bolha de sabão que explode e não é nada, só o que era. É possível sermos uma idéia do que fomos?
Afinal, se somos cinema, quem nos assiste? Quem é a emoção da pipoca, o brilho dos olhos, quem é o nome no final das cartas? Sou então a lâmpada seca. E a carta é o outro. Intangível. Invariavelmente hermético. O toque não é troca. Troca não é penetrar, é assumir.
Meu filme é meu grito. Sou meu fantasma. E ouço. Mesmo que o nome no final da carta não seja eu. Sou quem grita a carta. E sua existência depende de mim. Parem, pois, de querer escutar os gritos dos fantasmas, de separar a carta do leitor, de achar que o mundo tem uma beira e um bueiro!
Vamos falar de amor. Este é troca. Quando é que trocamos na vida? Não, tudo é toque, tudo é torto, tudo é sombra. Até a própria luz é a própria sombra. Enquanto quisermos atritar para unir, não seremos um só. Nossas casas são construídas assim. De atrito e cimento. O amor não é cimento. Nem é casa. O amor é duas mãos unindo-se em uma. E não existe uma que faz e outra que sofre. Existe um só. Dói ouvir isso, mas o amor não é ego. Não existe o eu nem o outro. Só o amor.
Por isso os fantasmas gritam. Por isso o cinema chora. E as cartas não dizem aquilo que buscamos ler. Nem a lâmpada consome o ato iluminado. Amor não é luz, mas a luz é amor. E nós também.

Quem és Tu

Pára. Quem és tu? Te procuro ou foges de mim? Te sou? Quem és tu que não apareces, e não calas porque não falas e jamais falas porque és tu? És o outro ou minha própria extensão? És meu braço, minha perna, meu cabelo? Ou comparar os cabelos é distinguir o meu chão e o teu teto? O meu quarto e o teu terço? Quem és tu se não marcas o começo? Tens tempo? Tens linguagem?
Ah, quem é esse que procuro e que me abafa? Quero ser para ti o tu, pois tu para mim é o que não sou, quero ser para ti – não te escondas! Não brinques de esconder-te, revela-te tu! Quem é esse outro ao qual clamamos e jogamos, ao qual nos reconhecemos: existo sem ti? Jogo a bola, mas se pego sou o tu eu-mesmo. O outro. Olho-te e ouço-me. Quem és tu que olhas o que eu olho e os meus olhos te refletem refletindo-me?
Esse tu que me desnuda, me desaquece, me calafria. Esse tu é vício engomado, é pele sem sentido, é desejo vomitado. Pretendes de esfinge, ah, faz um pacto comigo, deixa eu ver-te no retrato, tu que és vento?
Tu, apessoado, és uma fantasia que só existe em mim. Crio-te. Consumo-te. Mas sem saber-te, ou sequer ouvir-me, troco contigo meus espinhos e facetas, minhas caras são tuas e para ti comigo existimos. Não te abraço nem devoro, não te provoco. Ironizo-nos. Somos um só e tu nem sabes, tu não sonhas porque teus sonhos vãos nem nos pertence. Vou contar-te um segredo: é por isso que existe um Deus. Ele só existe enquanto existe um nós que o afirmamos. O criador é a criatura e a criatura é o criador. Indistinguidos. Compromissados. Numa firma secreta. Temos um pacto mútuo com Ele. E somos solidários por isso. Mas isso é segredo.
É por isso que tu me fazes sem querer. É por isso que tu revela-me em nem me conhecer. E eu te conduzo à minha vontade. Tu és todo e o sou também. É bonito! É bonito ser e ser o outro. Deixa-me berrar ao ar livre que eu e Deus nos demos as mãos e brincamos de molhar o mundo!
Tu um dia me perdoarás, mas é preciso matar-te para que eu seja. Esquecerei de ti e tua hipótese. Dessa possibilidade de projetar-me em ti a cada passo. E serei comigo tudo o que quiser. Sem ti. Aceito-te. Aceito o meu vazio não te pertencer, aceito a idéia de que és apenas, numa idéia. Acredito que minhas idéias são tão tuas quanto as tuas são as tuas. Te encontrarei em algum tempo e não saberei quem és tu. Caço-te ainda! E coço-me. Perdoa. Eu ainda não sei viver sem mim. Hermético que sou: só para ti.

domingo, 19 de agosto de 2007

Projeto de Samba

Cê diz que não fica
E eu saio e você faz
E faz e depois nega
E depois nega que negou.

sábado, 18 de agosto de 2007

O Complexo de Vaselina

Havia ultrapassado obstáculos, subido montanhas, havia transposto o intransponível. Tudo para chegar a um lugar o qual não o queria, chegar em aonde ignoravam seu suor e seus cálculos meticulosos; ele havia estalado os ossos guiado pelo foco obsessivo de ter uma meta. E depois dessa meta ele todo era o próprio destino o qual almejava com tanto esforço; e o próprio esforço seria a recompensa querida – a garantia involuntária – quando nada mais valia que não fosse o próprio movimento do punho abrindo-e-fechando. E disto nem tinha consciência quando seria ele ou quando não o seria, porque toda sua luta era apenas a forma como se constituíra, e a partir disso não nasciam flores e nem quebravam pedras em areias, apenas aumentavam seus níveis de consciência. Estar vivo, então, era apenas um objetivo: ultrapassar-se. E de tão complexo ele apenas seguia, pusilânime, sendo a surdez seu escudo arbitrário.
Ela criava era em seu trono, com seu longo vestido branco e sua coroa de flores, chorando uma perda ainda não perdida – soluçava uma busca pela própria busca: ela estática quando a primavera lhe sorria morna: mas um vento gelado lhe encontrara a nuca; ela postava de esfinge e apunhalava em si a estátua de princesa: e seu choro era tão seco quanto seu coração, mordendo a fronha do travesseiro, contendo os pulsos de paixão, adormecia. Seus cabelos longos desenhavam no ar seu próprio medo: era uma presença imposta ao espaço, e doía mais nela do que nos turistas: ser mais salgada para si enquanto a língua fomenta em desgosto. Havia sobre ela e seu trono uma luz que predicava, alheia, mais uma sombra que uma forma: um monumento iluminado com a luz fria dos hospitais.
Ele a buscava porque lhe queria bem. E ela era o lugar que gozava ao ignorar dele a necessidade bruta.
Mas seus caminhos haviam se cruzado, naquele apelo indelével que abarca os que respiram: dançavam em tons diferentes mas por um segundo foram obrigados a entrar em sintonia. Embora essa obrigação não significasse uma conseqüência.
Pois ao longo da trajetória penosa eles sempre caíam no arroto fácil do movediço: e por mais que dessem as mãos jamais eram as mãos que se encontravam, eram apenas pele, atrito, cor e forma. Buscavam o que naquela relação haveria de essencial: mas só acham as penas e os pêlos: o fígado esmiuçador seria uma impossibilidade sagrada? Por que não chegavam nunca ao que era essencial? Ao cerne grosso e rugoso como um intestino, no que tudo estaria esclarecido?
Mito. Para chegar até ela ele teve que devastar florestas sacramentais, teve que enforcar dragões invictos, teve que atravessar labirintos históricos. Passara por cima dos tabus e do imperfeito. Estivera acima de qualquer convenção ou possibilidade retórica. E tudo isso por um amor às favas do nojo e da estranheza. E tão sedutor quanto. Com seus mistérios refogados.
Ela criava monstros e os apresentava ao cavalheiro, dificultando sua vinda, impermeabilizando a sua fobia. Não sabia em nome de quê agia ou a qual legado restariam suas odisséias entroncáveis. Mas media sua força a partir do sucesso do barranco em impedir do homem a vinda.
Ele sabia que ela o temia e ele temia o temor dela, e feito folha caindo da árvore, perfurava no peito dos dois o empuxo do ar, que fazia a folha vacilar mas nunca apunhalar-se: brincavam de balanço com a própria queda: com medo de encarar a vertigem e aproveitando da brevidade do que antecede o tombo. E como neles o tombo nunca acontecia, respiravam fúnebres uma premissa obrigatória: a de estar vivo.
Mas por algum motivo comum ao peito eles não resistiram. Ele chegara lá. E ela também, na medida em que se/o permitia. Os cabelos longos da princesa agora eram levados pelo vento que vinha de outrora: ele chegara perto do seu trono, mas seria dele o seu leito?
Ele queria saber quais eram dela os problemas. Ela queria que ele não quisesse. Ele deixou claro o valor de suas intenções. O que a fez concordar. Mas concordou levando os olhos ao chão, o que fez dele arrepiar um pêlo das costas.
A princesa insistia que estava bem e muito grata por toda a ajuda. Foi quando ele a sentiu mais uma vez escorregando pelas frestas inerentes ao remorso de seguir uma natureza.
Até que cansara de brincar de pega-pega. Não chegaram que nunca ao tal do essencial: era o complexo de vaselina: ele que – com as mãos cheias de óleo – infringia no abuso do impalpável; ela que, antes mesmo de saber-se, já escorria pelos dedos ensebados, e o que era um crime: pelos próprios dedos. E o cerne de suas questões era apenas uma promessa respirada.
Confrontavam-se e não sabiam se se amavam ou se era uma tosse necessária. Talvez uma febre o atingisse, ou talvez a secura na garganta lhe servisse de anticorpos para a dor maior de exprimir-se na razão plena: estendera sua toalha e erguera seus pratos, e estava pronta a refeição, aquela em que se despede numa fúria gasosa, com a canela trêmula e a emoção em carne viva. Fez o que era necessário, quando a voz o ultrapassava e os pensamentos lhe impeliam:
– Foge, princesa, foge. Foge que de teu espaço restará a minha marca: e não escaparás do que tenho a oferecer-te: minha ausência. Foge, menina, recalcitrante do medo, escorrega pelo inevitável – brinca com os olhos espantados, e o coração intolerante. Foge e some do que pregas, mas não anseia mais que donde turvam os olhos, pois incompreensível seria não ter no corpo o próprio limite. Tua fuga é meu encontro e me faz no teu jazer: é agora nosso encontro: olha nos meus olhos e firma-te, crava neste chão tuas pegadas: e jamais morreremos por um vão qualquer: nesse instante não fingirás de princesa e serás o que quiser. Engole-te e assume a carne fria que tange tuas madrugadas estancadas: sê um sopro e arrepia minha pele, sê uma dor e encrava meus anseios, mas sê mas fuga e te depara contigo. Abraça-me que te reparo; mas o essencial está às costas, então, foge, menina, que do outro lado teu legado clama. Foge, menina, cresce.
O pai a encarou, acenou um “sim” com a cabeça, e, levemente, com os lábios comprimidos, ensaboou as mãos.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Sobre a Culpa e a Falta

Nos livramos da culpa. E como nos livrarmos da culpa de não ter culpa? Se um ato adquire peso significativo em nossa suposta consciência, e desejamos, no mesmo nível de consciência, não nos corroermos pela culpa, não estaríamos errados por não sentir culpa de termos cometido um pecado tão pesado em nós?
Sim, eu permito-me ao abandono da culpa. Mas me culpo por isso: sinto-me mais culpado. Estremece a sensação de que sentimentos são cadeias paulatinamente obsessoras. Nos livrarmos de qualquer culpa implicaria livrar-nos do próprio ego. Ego – essa cidade sitiada, donde brotam florestas encrenqueiras, que se entrelaçam e muram-se a si própria; essa cidade persona que estabelece o certo e o errado.
E não estamos preparados para isso – ainda queremos olhar para os nossos retratos e firmar a certeza de que somos alguém. O alguém que chora, que murcha, que urge, um alguém que apela e atropela, esse alguém culpado que culpa e cospe e renega o outro com a mesma autoridade com a qual não enxerga a si.Talvez minha culpa seja escorregar ao invés de saltar no abismo, seja capengar ao invés de pousar, seja representar ao invés de dar-me. Minha verdadeira culpa é ter um eu a quem culpo. Jogo nele meus segredos mais ousados. De uma ousadia boboca. Mas que em mim expande-se e ultrapassa-me. Minha capacidade de fugir de mim é a mesma com que culpo as minhas faltas de fuga. Pois é certo: quando nos descobrirmos e nos acertamos em finalmente dar cara à tapa, receberemos carinho. E agradeço a mão do outro que prova a existência de minha cara. Afinal: só sinto culpa pelo outro, e apenas através dele me liberto. Falta coragem. Falta palavra. Falta dar a cara à tapa. Falta aceitarmos a falta. E jamais nos culparmos por ela.

Rasgar Tudo

Vontade de rasgar tudo, por mais que não queira estou sambando com as palavras e elas estão querendo dizer outra coisa que não o que estou escrevendo: pode um símbolo representar mais do que a ele entregamos? Sim, pode: questão de irreverência. Essas palavras não duram muito e são torneadas por alguns afazeres meio suspeitos e incolores e eu nem sei mais de onde vem tanta vingança e tanta sede: que me abduz de forma sigilosa e quem estaria melhor que eu querendo insinuar-me tantas coisas escondidas: vem aqui no peito uma saudade do que nunca existiu: como se minha obra estivesse no varal e não houvesse sol nenhum: e a fria lua sempre insuficiente e nem por isso menos cara: ri-se de mim e de meus pretensos relâmpagos. Sobrou isso da força vital que eu nem...? Silêncio. A mão cansou. Hora de dormir, simplesmente. Quem sabe assim se vive mais e melhor. Eu não sei.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

O Criador e a Criatura

Era um cavalo e chovia muito. Não que a chuva fosse boa, mas molhava gostoso e o cavalo estava nu. Não que nudez fosse boa, mas o cavalo nem sabia se chovia e muito menos que era gostoso porque estava nu. Pisava nos buracos lamacentos, mesmo sem saber o que era lama. Estava nu, molhado e a lama nos pés era gostosa. Não que a lama fosse boa, mas o cavalo não sabia o que era bom nem sabia que não o sabia.
Pior somos nós que pisamos na lama e a conotamos, conotamos nossos pés, nossa chuva, nossos buracos, nossa gente. Fossemos um cavalo nu, molhado, eslameado e inconsciente da própria inconsciência, nem saberíamos o que acham que seríamos. Então não-saber é o saber que me é abençoado pela minha consciência. Sei como é saber que ele não sabe. Sei como é ser um cavalo, mas não saberia se o fosse. Nem ele sabe que eu sei, nem ele sabe que eu sou, nem ele sabe que é. Mas eu sei quem não sou. Não sou cavalo. E o gostoso do toque da lama no cavalo nu e molhado é um sentido que se sente apenas para mim. Eu invento o cavalo e a essa idéia inventada me inventa. Eu não sei o porquê, mas isso me trás uma imensa liberdade. Eis o grande abismo entre Deus e os homens. Ser um cavalo não é, em hipótese alguma, melhor que pensa-lo.

terça-feira, 31 de julho de 2007

Por um Triz

Oco como pedradas tinindo o cristal, sem jamais quebrá-lo, apenas para testar seus limites e ameaça-lo, brincando de encontrar sua taxa de resistência média, como num cálculo furado e esquizofrênico. Brincando de abraçar o mundo, esse menino não fala nada porque não se vê. Ou porque tem medo de jorrar palavras, e quando o faz solidifica pedras no caminho – e com tanto medo de esculpi-las e deforma-las ele as engole antes de serem pedras: ele engana seu fluido que não flui: atravanca, emperra. Pensa coisas mais fluídicas e num lúdico ao avesso ele desata suas imagens fora de foco, ele tece meias com o cuidado de quem já furou o dedo e nem dói mais. Esse menino não busca mais às palavras, ele é todo sonho, e se cobre com a folha do arbusto – ele sonha-se em ser filho do mundo. E se acolhe. Tudo para abraçar a si mesmo.
Foge das palavras repetidas, dos sentimentos viciosos, do mesmo erro dos mesmos. Ela queria um céu, mas ganhou uma lata. E não sabe o que fazer com a lata depois que já se bebeu tudo. Ele não quer fazer escultura pois tem medo de perder sua lata – e a forma da lata é uma forma sentida só por ele e é tão dele quanto nunca foi lata. Por isso contempla a lata, apenas. Aceitando-a. Mesmo que para isso lhe seja necessário a servidão, o cárcere da própria forma da lata. Seus olhos permeiam lentamente além do contorno e menos lata e menos ele se encontram ali. Numa súplica de comunicação, ele não fala, mas quer ser ouvido.
Talvez fosse melhor que lhe pintassem um retrato. Assim poderia ser o que quiser. Herói. Anjo. Sábio com barba branca e sorriso meigo. Com aquele olhar maduro e certo que no menino ainda é só numa esperança e numa referência torta. Pois ele usa do que lhe é ofuscado e premisso ainda para servir-lhe de comparação. No retrato, poderia ser o melhor dele o qual nem acredita. E poderia deixar lá todas as suas cobranças.
E então, guardado numa pincelada, como uma redoma épica, ele poderia ser todo seus medos novamente. E não precisaria cobrir-se no arbusto, como se fosse feio demais para mostra-se. O menino não se achava digno de uma beleza. Mas sendo belo na figura, ele poderia permitir-se ao fracasso. E abrir a lata e errar com ela. E sê-la sem teme-la. Conjugues. Ele poderia então arriscar um mergulho nos seus labirintos e meandros , tão sofisticados e herméticos que ele precisa fingir ser outra coisa – que é só criança burra, que é só um pirralho oco. Mas assim ele se entendia. E vivia mais longe de todos porque assim era melhor. Não fazia parte do mundo que afinal era seu pai. Ou fazia tanta parte que fugia de medo. E sabia que o leão era o rei da selva porque o elefante não sabia da força que tem. Quando fosse pai, o menino seria todo uma folha de arbusto.Pegou sua lata, e pensou, ou nem pensou, tão irreverente que era ser por um triz: a enterrou: pobre de espírito que era. Iria rega-la todo o dia. E talvez um dia nasceria uma árvore de latas. E poderia fazer quantas esculturas quisesse, pois a criação seria inesgotável, enquanto a sua criança ainda o quisesse pensar em formas. Gostava de errar quando não perdia nada. Queria garantias – logo nesse mundo onde as catástrofes sempre esquecem de mandar convite. Mas tinha um plano: iria enterrar-se também. Sabia que não era o modo certo de fazer as coisas. Talvez o certo seria usar de um só de si e jogar-se no abismo. Mas não sabia fazer assim. Pensou que se ficasse oculto aos olhos do sol que julgam tanto e definem e amoldam, pensou que poderia regar-se todo o dia lentamente, e então dele brotariam milhões, e de tantos “ele” poderia com cada um ser uma forma, e os que não desse certo jogaria fora. Como Deus faz com os infinitos planetas. Talvez ele assim conseguiria abusar-se e obter-se com o melhor rendimento possível. Talvez desse certo. Era arriscado. Mas esse era seu modo torpe de fazer as coisas. Tão irreverente que era ser por um triz.

Quando a Lógica Falha

E quando o excesso de gentileza, ao invés de ceder, nos engole? Aprendemos em matemática que menos com menos dá mais – porque se digo “não não quero”, significa que eu sim quero. E se digo “sim não quero”, significa que não quero, portanto mais com menos dá menos e menos com mais dá menos. No entanto, já pensa o leitor astuto que sabe que mais com mais sempre dará mais – pois “sim sim quero” é confirmar a afirmação já afirmada: é portanto afirmar três vezes (uma do sim, outra do sim, outra do quero). Engana-se.
Estava andando na rua. Pessoas transitavam abstratas na estreites calçada. Eis que passa um homem gordo. Nada contra gordos. Inclusive, já diz a piada, que se todos fossem gordos as pessoas estariam mais próximas. Estava suado. Seu pisar marchado endoidecia a sujeira do chão. Cruzava meu caminho. Não cabíamos os dois na mesma rua.
Nesses casos dinâmicos, não há muito pensamento: ou você vira a direita ou a esquerda, e transpassa-o. Limpo. Talvez com algum suor absorvido. Mas vivo. O que já vale alguma coisa.
Não é um ato de nojo, mas pura generosidade. Entenda. Não sou ridículo, ao contrário, sou sempre do tipo que murcha os ombros para os outros passarem, pois há aqueles cujo barulho do piso, se traduzido, é o mesmo que “Sai da minha frente! Xispa!”
Ou seja: sou gentil. Decido pela direita.
Pior do que ser gentil é ver que o sujeito – a quem eu já estava ficando secretamente apaixonado – também o é. E titubeou para o mesmo lado.
E então começa uma pequena disputa de altruísmo. Um quer ceder o lugar ao outro, mas vamos sempre para os mesmo lugares. Ficamos exilados na própria intenção. Cárceres da solidariedade mútua. Isso dura alguns segundos – mas é o suficiente para uma confusão mental. Afinal, mais com mais deu menos. A anti-lógica revitaliza a esperança de que não somos binômios quadrados perfeitos. Somos errantes de boa vontade. Pobre de nós, que se construíssemos calçadas maiores libertaríamos o caminho!

sábado, 28 de julho de 2007

O Primeiro Corte

Mas isso acontece quando se foge de si mesmo. Torna-se seco. Murcho. Fujo do que sou. E o que sou? O que sou do que não sou? Que vim aqui para arrebentar a boca do balão, estrondar o perfeito e estraçalhar a faca no bolo, sem a falsa piedade do primeiro corte dos aniversariantes que não querem estragar a goma enfeitada. Ou então esse exterminador de laços no cabelo é uma farsa, e me jogo na farsa – com medo de me enganar a mim com o meu eu-farsante, que de tão desinteressante sufoca calado: esse meu lado bicho acostumado a rir às pessoas por trás do vidro no zoológico. Esse meu eu anti-lógico que, com medo de assassinar um dia, se assassina.
Esse meu fermento torto. De um bolo que para não ser um dia despedaçado resolve nem crescer na fôrma. Sou isso. Uma possibilidade de um doce querido. Que quer ser devorado, salivado, engolido. E só assim compreendido. Sou essa expectativa na fôrma que água gostoso. Numa esperança. No coçar dos dedos. Nas unhas sujas das crianças. E nos brilhos ásperos das pupilas. Me perdi completamente em ser possível ser um bolo. E ser enfeitado. E ser bonito. Ai, mas para que ter medo de crescer?
Sou novo e ainda existo no caminho que não existe. Não existe porque eu não quero. Porque eu escolho o doce que sou. E posso ser amargo, para que me descortinem. Só para me xingarem. Para estrondar a festinha colorida dos que esperam sem se debaterem. Mas não sou isso. Ainda assim sou uma farsa.
Mas como estou ficando bonito! Mais fermento, mais açúcar? Menos essências? Menos “eus”, mais desencontros. Mais portas e menos janelas. Não dá, não sou mais tela, não sou mais brinquedo. Estou me decorando. Estou compondo a música do parabéns. É agora. As palmas fazem fundo, mas não é as palmas que quero. Quero o depois. Quero o silêncio após os parabéns. Aquele vão que parece descortinar por um segundo a felicidade forjada, a alegria esculpida e maquiada – o cabelo passado a ferro. Aquele abismo torrencial a que nos prestamos a quase arriscar, mas somos medrosos! Estúpidos. Comemos o bolo. Comemos o bolo para fugir do silêncio seco que incomoda, dos perfumes doces que atritam, das inquietudes que deslizam na palma, e que mesmo após as palmas continuam lá. O silêncio que me desnuda e me descortina e nele não me enfrento porque sou todo granulado. E jamais inteiro.
Que venha o primeiro corte! Vem junto com o desejo, de contrapeso. Que desejo? A real intenção ficou a esmo no segundo anterior. E todos os desejos são trocados. Como um filme dublado. Ouve-se uma coisa mas no fundo sabemos que é outra a coisa ouvida. E sabemos que somos incapazes de decifra-la. Que venha o doce!
E nossas escolhas permanecem menos escolhidas. O fogo foi embora com o sopro, ou o sopro engoliu o fogo? Somos fogo dissipado e por isso mesmo não escolhemos com vontade, apenas queimamos tudo que é para ser queimado? Queremos todos os gostos, todos os cheiros, frios e ardidos, tudo que umidece e embabece a alma como pele grudenta e melada de... amor?
Pois as velas são guardadas na gaveta, e do bolo lindo que até fotografamos só resta um convite rasgado, uma lembrança a mais armazenada. E esquecemos das marcas e que tudo nos marca, e continuamos a marcar sem saber e mudar e reproduzir e criar.
Sim, vamos destruir o bolo, vamos sacia-lo, vamos sê-lo mesmo sem saber, mas pensar que seremos sempre aquilo que mais nos faz falta e um dia olharemos para o passado com maturidade e altivez de quem já meteu a mão na farinha com leite e ovos e já fez crescer com dor e suspeita. Sentimos um frisson perigoso e belo e quando os nossos reais desejos se manifestarem já não serão mais desejos. Dar o primeiro corte é renascer. É recriar. E podemos dormir contentes. Sabendo que viver é transformar. Mesmo na ponta da faca. Mesmo na fôrma.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Mesmo dos mesmos

O segredo dos outros é sempre muito mais importante para os outros do que para nós. Vivemos impressionantemente condensados a esse hermeticismo de não sermos compreendidos, de resguardar nossas expressões e impressões que a nós são elevadas a potencias inexpressíveis e tão ridículas a nossa razão. Temos dentro de nós tudo o que é sagrado para nós mesmos. E apenas sagrado para nós. E por isso mesmo sagrado. O mais inacreditável é que quando nos resolvem contar um segredo somos os primeiros a implorar: “Conte, conte!” Mesmo esse conte sendo mais valioso para o contador, precisamos doar essa vontade de ouvir para que assim brinquemos de comunicar – fingimos ser aqueles animais de raciocínio evoluído. E no cessar desse fingimento encontra-se a sem-gracisse do segredo contado, a decepção de não sermos tão importantes para o outro quanto somos para nós.
É por isso que finjo. É por isso que visto minhas roupas e cruzo as pernas em público. Ergo uma postura. Finjo que não quero, que não gosto, que não sou. Finjo que sobrepujei o útero, quando na verdade quero sim voltar às águas. Ao calor.
Finjo e desse fingimento surge a conversa fingida, tão simulada quanto inacabada: aquele sorriso para sempre em suspensão. Em suspensão algo que não acontece. Por que não queremos, porque fingimos bem. Finjo ter mãos fortes e unhas feitas, finjo comer bem e ser saudável, finjo ser rico e ter muitos amigos.
Mas se eu pudesse por um momento revelar-me. Sem a blindagem do ego. Sem a modéstia degustada. Se eu pudesse mostrar-me a palavras. Se pudesse tocar com as palavras. Musicaria pensamentos. Atingiria os ventos. Se eu pudesse ser brega! Se eu pudesse falar das flores que tranco em latas de alumínio. Se eu pudesse rir dos gestos grotescos, me abrir ao olhar meigo. Se eu pudesse traduzir o quanto me tocam as pessoas, que com um mínimo me vasculham, me atropelam. Se eu pudesse ousar sobre o abraço e perder o medo de sentir o bom do entregar-se: sempre ao abraçar alguém querido me pergunto qual deve ser o tempo do abraço, se já está bom ou o que vai pensar o outro se durar mais. Sempre o medo que me chuta ao invés de abraçar-se conosco.
E se eu pudesse mais. Gritaria por nomes outrora recusados. Suplicaria pela presença, almejaria ser todo mundo. Almejaria ser mãos. Se eu pudesse abusaria calar de vez em quando. Se eu pudesse ser eu e então compreendido, começaria por deixar-me ser água escorrendo pelo ralo quando me sinto apavorado. Assumiria que derreto sem querer. Confessaria que basta uma piscada para me derrubar.
E se tomasse coragem, espalharia amor. Pois amo a vida. E se eu pudesse esborrachar-me, chafurdar-me nos precipícios alheios, até relataria que gosto das coisas. E que as necessito. E escreveria o quanto sou pobre ainda. E descreveria meus dias em casa vendo televisão. E desabafaria minha solidão. Se eu pudesse então preencher-me com os quês alheios, me enrolaria no lençol e tremeria de frio. À espera do beijo de boa noite da mamãe.
Se fosse mais completo ainda, choraria quieto. Ao som de música religiosa. Sem medo da pieguice. E assistiria meus ídolos no palco. E quando eles me olhassem lá de cima, trocaríamos amor. Na confiança certeira de que estamos nos dependendo para fazer segurar a nossa segurança mútua. Nos agarramos e por isso não caímos.
Então, por favor, conte-me seus segredos. Mesmo que a princípio não me valham nada. Mesmo que não seja eu mesmo. Por favor, não fujamos nem finjamos que o que esperamos chegará e lá seremos. Sem aborto. Mesmo que caiamos sempre no mesmo. O mesmo dos mesmos.

domingo, 22 de julho de 2007

Compartilhar

Quero hoje empregar aqui o melhor de mim. Mas se tiro de mim o melhor, o que me restará em dentro? Não quero ficar com o que sobra depois da satisfação mastigada, não quero apenas com os farelos e restos de molho e os caprichos depois do suor. Então devo deixar aqui apenas o pior de mim? Quem sabe lá meus medos, angústias, os pecados que cometo em segredo, os olhares fulminantes que distribuí quando me viraram as costas, devo deixar aqui meu lado brutal e sarcástico? Mas assim o que estaria eu distribuindo? Quero distribuir o bom do ser. E isso é divino. Talvez tenha encontrado uma definição para o amor verdadeiro: conseguir colocar aqui o melhor de mim sem temer restar-me apenas as sobras, e talvez assim o meu lado bom será compartilhado e não dividido. Divisão é subtração em termos. Compartilhar é partilhar junto. E partilhar é amor apenas. Será que é isso? Compartilhar? É, estou inteiro e melhor que antes.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Fugido

Era a primeira vez que topara com isso e não estava acostumado a sair. Viu como eram brilhantes os olhos alheios, ou qualquer coisa alheia, e se assustou. Fugiu feito um beato pobre e chorão. Mas fugiu e fugiu bem fugido, como se para isso sim fosse macho e honroso. E não pensava. Não tinha mais porquê ou sequer motivação para reflexões que muito provavelmente apenas denunciariam sua estupidez. Ele agora era hermético e caminhava só. Roia as unhas e não havia nada além que pudesse fazer. Essa insegurança do fazer o alertara outrora sobre como mastigar suas próprias inquietudes. Não sabia domá-las e se achava feito de açúcar: como sentir seu gosto? Ele tantas vezes formigava seu próprio peito, sem assumir do mel que este produzia porque afinal era rígido e forte e não vacilava nos buracos estreitos e omissos da rua em que caminhava; e por isso caminhava, feito criança no parque com algodão doce, espalhando pipoca e doando energia; não, não era assim, era como um bandido fugitivo, como um monstro escondendo-se (desses que assustam para não se assustarem), era como um assassino, um infanticida, matando de vez a sua criança. Queria rodar nas alturas. Mas só pensava em fumaça e cinzas. Afinal era disso que constituíra-se em seu percurso mágico. Fechou os olhos, parou de andar. E caiu em si mesmo, num lapso de amor. Sentou-se ali na poeira e abraçou-se. Nunca mais abriria mão de si. Rolou pelo chão e prometera que não seria sua presa. Sentiu seus braços sobre a terra, e por um vislumbre subitamente humano seria capaz de abraçar o mundo num só abraço. Ele, tão pequeno e supérfluo às dinâmicas de outrem, foi crescendo, crescendo e inflando feito um balão colorido e sangrento. Voava no chão como nunca voaria pelos ares. Aqueceu-se e deixou-se perder nos sentidos. Como se toda a vida se esgotasse àquele chão. E ali ele todo estaria, e seria, fosse santo, porco ou fosse mãos.

Enfarte

Estou farto.
Farto de quem diz “sei lá” como se fosse lá para saber.
Farto de dentes carcomidos,
de bocas entupidas de massa
que escarram nas massas;
Estou farto de orações citoplasmáticas
Farto de barrigas audaciosas
Farto de vida pré-datada
De cheques sem fundo,
De baús oxidados.
Estou farto da abundância de quem não tem nada,
Do excesso pecaminoso do mal-logrado
Estou enfermo de cores Mc Donald’s
Farto de arrotar coca-cola;
Que fartura é a falta!
Como o azul é tão tênue que nos cega
Como tudo atropela o próprio apelo;
Nossos gritos estremes abafados:
- Incompetentes! Infartados.
Nossas escolhas são ditadas pela placa.
Estou farto do sufoco na garganta;
farto da lasanha à bolonhesa.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

A Troca

Telefonaram-se e marcaram um encontro. Ela, a princípio, não queria – estava jogada no sofá deixando a televisão falar sozinha: não queria dar-se ao trabalho de ser alguma coisa. Ele, acabara de correr oito quilômetros e estava bem. Ela aceitou, como um berro pra dentro.
Ele tomou banho e perfumou-se, pensando no estilo que faria. Cortou as unhas para não parecer selvagem demais e passaria um gel no cabelo para ser mais elegante. Não. Deixaria um cabelo jogado, estilo rebelde. Estava velho demais? Bermudão descolado ou manga rolet? Ela botaria qualquer roupa. Prendeu o cabelo sujo para trás, disfarçando a má-vontade de parir a todo encontro. Pois era assim: ela paria e ele expelia. E para expelir ele se aprontava: e jogava fora o que não queria mais. Para ela era mais doloroso. Para ele era doloroso depois que se jogava fora: ficava nu e vazio e não sabia o que fazer com as mãos. Suava. Ela pegara uma gota de perfume, para lambuzar no tédio: esfregava no pescoço arrepiado e pensava que aquele cheiro sumiria antes que ela pudesse ser ela. Mas afinal se perfumava para o mundo, só para o mundo ter o prazer de consumi-la. Ele pegou o carro, conferiu os cds de música romântica que tinha. Pensou em música erudita. Mudou de idéia. Pensou em Caetano, Chico. Pensou em Caetano e Chico interpretados por Bethânia. Mudou. Muito forte. Assustaria.
Vestiu um salto e a fivela a feria. Calça jeans ou mini-saia? Ele não gostava de mulher de jeans. Gostava de pernas a mostra como mulherão-selvagem, mas cruzadas sutilmente como “não-vem-que-não-tem”, mas não muito cruzadas do tipo “não-há-vagas”: gostava mesmo das pernas cruzadas de forma “sou seletiva, esforce-se” e então ele iria aos poucos com os dedos grossos – e o coração morrendo de medo – acariciando, passando o recado “sou macho mas domesticável” e então nela o coração se excitaria de ânimo naquela covarde intenção que muita mulher tem com os cafajestes declarados: “esse é safado mas sou eu quem vai dar um trato”, “vou retê-lo nas mãos”, “comigo ele muda”. E então por cima dos dedos os olhares suariam ao se tocarem sugestivos e cheios de intenção e ele sentiria prazer vendo que ela estava entregue ao afirmar a sua masculinidade. E assim ele poderia faze-la fêmea. Afinal o homem gosta da mulher porque ela lhe faz sentir-se mais homem ou ele gosta do fato de ele ser homem fazer a mulher ser mais fêmea? Com certa dificuldade porque havia engordado, ela vestiu a calça jeans.
No carro, ele lembrou que não tinha se curado da assadura na coxa. Também não fizera a barba. E não estava tão forte como queria. Fingiria?
Ela saiu de casa com certa elegância. Chamou o táxi e entrou, sentindo-se a pior mulher do mundo. Durante o percurso, o taxista a encarava pelo retrovisor. Corou. Corou mais ainda ao perceber que seus peitos enrijeceram. Mulher gosta mesmo é de ser mulher: ser admirada e possuída: pois há alguma coisa na pose que lhe dá garantias de acerto, ser possuído é sinal de aceitação.
Ele, que há muito não ouvia um elogio, não sabia exatamente se estava no caminho certo. Precisava chegar antes dela porque era cordial. Chegou.
Enquanto ela pensava sobre o que falariam durante o encontro. Não suportava o silêncio. Era melhor falar qualquer idiotice do que denunciar que não possuem afinidade. Ou talvez possuir real afinidade é aceitar o silencio como convidado honroso: quando só estar já basta.
Mas não bastava ter chegado cedo, ele não tinha o que fazer com o próprio corpo. Enfiava as mãos no bolso, mas afinal isso parecia ridículo. Cruzava os braços, mas isso pareceria impaciência. Talvez devesse estar falando no celular quando ela chegasse. Mas isso seria blasé demais. Mas se ficasse ali parado estaria entregando sua fragilidade. Não deveria ter chegado antes. Deveria bancar o “descolado atrasado”. Mas não saiu dali, com medo que ela chegasse no momento em que ele se retirasse. Ficou encostado no poste, com as mãos para trás, um pé no chão e o outro apoiado no poste, fazendo um quatro com as pernas. Assim estaria bem másculo.
Ela pensou em como deveria beija-lo no cumprimento. Não poderia ser aquele cordial, tinha que ter mais sangue. Também não poderia ser aquele muito forte no qual se entorta o pescoço para atingir a bochecha integralmente: esse seria dar o ouro ao bandido e isso seria a morte. Esboçou na mente como seria o meio termo. O taxista continuava encarando-a, às vezes fazendo comentários do tipo “hum-rum”.
- Essa hora o trânsito está mais livre, né?
- Hum-rum.
Ela entortava a cabeça ao máximo, para colher um pouco do vento que vinha do vidro. Fechou os olhos e se deu conta de que não estava mais no clima de não querer sair. Passara por cima da própria frustração. A essa altura já assumira o cheiro da noite.
Chegou. Ela o enxergou já de dentro do táxi, virou a cabeça de súbito para fingir que era, afinal, blasé. Pagou o tarado do motorista e saiu do carro. Fingiu procurá-lo. Ele percebeu sua chegada e olhou para o outro lado. Foi em uníssono mudo que os dois acharam o olhar um do outro. Foram se aproximando.
- Oi, tudo bem?
Deram dois beijinhos e esse fora o primeiro contato físico entre eles naquela noite. Foi tudo tão rápido e inorgânico que ela não percebera o quão máscula estava a pose dele no poste e ele tampouco notara que ela acertara precisamente na intensidade dos dois beijinhos. Entraram no bar, apenas.
Sentaram e pediram um chope. Ele, que tinha tantas dúvidas a respeito de tudo, agora se comportava como o mais perfeito que poderia existir. Ela chamava atenção para os lábios molhados ao passo que às vezes olhava para o nada como se tivesse um mundo ao qual preservava. Enquanto via o cardápio, suportava o silêncio.
Ele fora bem rápido:
- Você está linda.
- Brigada.
Brigada. Brigada, ponto. Ponto e desviou os olhos.
Seria melhor se eles não estivessem lá.
Seria? Ou seria, e como seria, melhor se eles estivessem lá?
Era tarde para o não. Já se deram ao delírio da invasão privada. Comungavam. Nesse momento era melhor que ela não estivesse à mercê dos caprichos dele, ele que como cobra seduzia e a enrolava o pescoço lentamente, ela cujos olhos infantes a prostituíam. Agora já estavam contaminados. Mas contaminados sutilmente: contaminados pelo que o outro representa. Essa era a dor mais doída: a da presença inevitável. A falta de uma invasão genuína, a falta de uma mão que adentrasse na massa e pudesse molda-la e passa-la o rolo: não havia mãos senão intenções irônicas que cutucavam sem ofender: era o castigo de precisar do outro: ou se dizer pedinte: os toques que não atingem, apenas ameaçam.
E eles foram falando das suas vidas e de seus porquês. E iam arredondando a própria fala. Os discursos iam quedando menos disfarçados e mais nobres. A comida ia descendo naturalmente, e o que era de dentro ficava dentro e o que queria ficar fora ia para fora. Assim veria naturalmente a cena qualquer um que estivesse ao lado. Um casal que se descobria, em nuances alternadas.
Mas havia lá, entre eles, algo que ninguém jamais poderia ter visto. Foi um instante em que esqueceram dos jogos e da conquista e se permitiram. Assim: aconteceu, pronto, esquece, não fica voltando toda hora nesse assunto.
Mas aconteceu. E foi o momento em que eles mais construíram. Construíram juntos mas também para eles mesmos, como indivíduos. Tá bem, eu conto. Havia, no meio da mesa, uma parede – invisível – um muro por donde nada traspassava. E à medida que eles iam falando, as palavras iam voltando íntegras para eles, feito squash. Elas saíam meio perdidas e iam voltando mais sólidas, achando seu lugar. O que quero dizer é que enquanto eles conversavam no fundo eles não estavam se ouvindo. Eles estavam falando deles mesmos para eles e assim era a eles mesmos os quem se descobriam na troca. O que era de dentro ficava dentro e o que queria ficar fora ia para fora.
É nesse enraizar para dentro que se constituía a troca. E o outro era aquele fantasiado do outro lado da parede.
- Sabe, como é bom conversar com você – ela disse. – Suas palavras me fazem tão bem.
Não se sabe ao certo aonde eles erraram. Podem mesmo ter acertado. Ou de repente era apenas a forma que encontraram de se comunicarem. Há quem critique. Há quem questione a existência do outro como um outro a ser descoberto. Mas o que tenho visto são espelhos mágicos onde nos revelamos ao tentar o outro.
Tomaram o último gole do último chope. Suas feições nem desconfiaram do que havia acontecido ali. Continuavam entretidas em criar as diversas máscaras. Os olhares escorregaram para dentro e o que ela viu depois do ultimo gole fora bem parecido com o que vira no espelho do táxi. Voltaram ao mundo real, onde salivavam os desejos altivos.
Pediram a conta e ele estava mais homem de si ao fazer o caricato gesto ao garçom. Ao pegar a bolsa ela sentiu-se como a única fêmea que ali era capaz de ser musa e exalar perfume de abelha num simples pegar da bolsa.
Ele disse que ligava e ela disse tudo bem, obrigada. Deram dois beijinhos e foi o segundo contato que tiveram pele-a-pele.

Tantas Línguas

São tantas línguas, suores, são tantos dedos desencontrados que se enfiam aonde podem. Há o que é íntimo meu e jamais exalo. Se ejaculo é porque não quero mais. Quisesse, guardava para mim.
Se me dôo a cada instante – e me reservo no mesmo – é culpa desse desejo incessante, que bate na porta mas é frio – tão frio quanto sou na madrugada, quieto, comedido; porque derruba casas? Eu, meu vento inóspito. Ah, se eu pudesse apenas construir, instruiria? E o que faria do que borrava ruídos e arranhões? Meu canhão cego procura coordenadas. Minha lucidez tombada nega qualquer definição. Fico sempre no vão da porta, entre a sombra e a entrada.

Entre Apêlos e Desespero

- Bom dia, senhor.
- Oi!! Quanto tempo! Eu não acredito!
- O que o senhor vai querer?
- Você mudou, está diferente. Cortou o cabelo?
- O senhor já conhece as nossas promoções? Temos uma novidade no...
- Desculpe, eu estou tão confuso hoje. Tá tudo tão no corre-corre...
- Temos sunday de baunilha com paçoca extra.
- Você emagreceu, foi isso.
- Hoje, especialmente, pedindo um cheese-burger você ganha uma Coca 300 ml.
- Qual é mesmo o seu nome?
- Com mais quarenta centavos, apenas, trocamos por uma de 500.
- E essas olheiras? Tem trabalhado muito?
- Temos também novos sucos especiais de verão: cupuaçu, manga, açaí...
- Senta aí. Toma um refrigerante comigo.
- Qualquer um por apenas três e cinqüenta.
- Você não bebe? Uma água, a gente toma uma água!
- Com gelo e limão?
- Claro, mas, me diga... o que tem feito? E sua mãe? Está melhor?
- Mais alguma coisa?
- E seu irmão? Passou no vestibular?
- Seu pedido sairá em cinco minutos, senhor.
- Espere! Não vá embora. Fique. Você é importante para mim.
- Dá dois reais. Vai querer a notinha?
- Não, mas...
- Caixa livre. Próximo.
- Desculpe. Hoje está tudo muito confuso para mim.