sábado, 28 de julho de 2007

O Primeiro Corte

Mas isso acontece quando se foge de si mesmo. Torna-se seco. Murcho. Fujo do que sou. E o que sou? O que sou do que não sou? Que vim aqui para arrebentar a boca do balão, estrondar o perfeito e estraçalhar a faca no bolo, sem a falsa piedade do primeiro corte dos aniversariantes que não querem estragar a goma enfeitada. Ou então esse exterminador de laços no cabelo é uma farsa, e me jogo na farsa – com medo de me enganar a mim com o meu eu-farsante, que de tão desinteressante sufoca calado: esse meu lado bicho acostumado a rir às pessoas por trás do vidro no zoológico. Esse meu eu anti-lógico que, com medo de assassinar um dia, se assassina.
Esse meu fermento torto. De um bolo que para não ser um dia despedaçado resolve nem crescer na fôrma. Sou isso. Uma possibilidade de um doce querido. Que quer ser devorado, salivado, engolido. E só assim compreendido. Sou essa expectativa na fôrma que água gostoso. Numa esperança. No coçar dos dedos. Nas unhas sujas das crianças. E nos brilhos ásperos das pupilas. Me perdi completamente em ser possível ser um bolo. E ser enfeitado. E ser bonito. Ai, mas para que ter medo de crescer?
Sou novo e ainda existo no caminho que não existe. Não existe porque eu não quero. Porque eu escolho o doce que sou. E posso ser amargo, para que me descortinem. Só para me xingarem. Para estrondar a festinha colorida dos que esperam sem se debaterem. Mas não sou isso. Ainda assim sou uma farsa.
Mas como estou ficando bonito! Mais fermento, mais açúcar? Menos essências? Menos “eus”, mais desencontros. Mais portas e menos janelas. Não dá, não sou mais tela, não sou mais brinquedo. Estou me decorando. Estou compondo a música do parabéns. É agora. As palmas fazem fundo, mas não é as palmas que quero. Quero o depois. Quero o silêncio após os parabéns. Aquele vão que parece descortinar por um segundo a felicidade forjada, a alegria esculpida e maquiada – o cabelo passado a ferro. Aquele abismo torrencial a que nos prestamos a quase arriscar, mas somos medrosos! Estúpidos. Comemos o bolo. Comemos o bolo para fugir do silêncio seco que incomoda, dos perfumes doces que atritam, das inquietudes que deslizam na palma, e que mesmo após as palmas continuam lá. O silêncio que me desnuda e me descortina e nele não me enfrento porque sou todo granulado. E jamais inteiro.
Que venha o primeiro corte! Vem junto com o desejo, de contrapeso. Que desejo? A real intenção ficou a esmo no segundo anterior. E todos os desejos são trocados. Como um filme dublado. Ouve-se uma coisa mas no fundo sabemos que é outra a coisa ouvida. E sabemos que somos incapazes de decifra-la. Que venha o doce!
E nossas escolhas permanecem menos escolhidas. O fogo foi embora com o sopro, ou o sopro engoliu o fogo? Somos fogo dissipado e por isso mesmo não escolhemos com vontade, apenas queimamos tudo que é para ser queimado? Queremos todos os gostos, todos os cheiros, frios e ardidos, tudo que umidece e embabece a alma como pele grudenta e melada de... amor?
Pois as velas são guardadas na gaveta, e do bolo lindo que até fotografamos só resta um convite rasgado, uma lembrança a mais armazenada. E esquecemos das marcas e que tudo nos marca, e continuamos a marcar sem saber e mudar e reproduzir e criar.
Sim, vamos destruir o bolo, vamos sacia-lo, vamos sê-lo mesmo sem saber, mas pensar que seremos sempre aquilo que mais nos faz falta e um dia olharemos para o passado com maturidade e altivez de quem já meteu a mão na farinha com leite e ovos e já fez crescer com dor e suspeita. Sentimos um frisson perigoso e belo e quando os nossos reais desejos se manifestarem já não serão mais desejos. Dar o primeiro corte é renascer. É recriar. E podemos dormir contentes. Sabendo que viver é transformar. Mesmo na ponta da faca. Mesmo na fôrma.