sexta-feira, 13 de julho de 2007

A Troca

Telefonaram-se e marcaram um encontro. Ela, a princípio, não queria – estava jogada no sofá deixando a televisão falar sozinha: não queria dar-se ao trabalho de ser alguma coisa. Ele, acabara de correr oito quilômetros e estava bem. Ela aceitou, como um berro pra dentro.
Ele tomou banho e perfumou-se, pensando no estilo que faria. Cortou as unhas para não parecer selvagem demais e passaria um gel no cabelo para ser mais elegante. Não. Deixaria um cabelo jogado, estilo rebelde. Estava velho demais? Bermudão descolado ou manga rolet? Ela botaria qualquer roupa. Prendeu o cabelo sujo para trás, disfarçando a má-vontade de parir a todo encontro. Pois era assim: ela paria e ele expelia. E para expelir ele se aprontava: e jogava fora o que não queria mais. Para ela era mais doloroso. Para ele era doloroso depois que se jogava fora: ficava nu e vazio e não sabia o que fazer com as mãos. Suava. Ela pegara uma gota de perfume, para lambuzar no tédio: esfregava no pescoço arrepiado e pensava que aquele cheiro sumiria antes que ela pudesse ser ela. Mas afinal se perfumava para o mundo, só para o mundo ter o prazer de consumi-la. Ele pegou o carro, conferiu os cds de música romântica que tinha. Pensou em música erudita. Mudou de idéia. Pensou em Caetano, Chico. Pensou em Caetano e Chico interpretados por Bethânia. Mudou. Muito forte. Assustaria.
Vestiu um salto e a fivela a feria. Calça jeans ou mini-saia? Ele não gostava de mulher de jeans. Gostava de pernas a mostra como mulherão-selvagem, mas cruzadas sutilmente como “não-vem-que-não-tem”, mas não muito cruzadas do tipo “não-há-vagas”: gostava mesmo das pernas cruzadas de forma “sou seletiva, esforce-se” e então ele iria aos poucos com os dedos grossos – e o coração morrendo de medo – acariciando, passando o recado “sou macho mas domesticável” e então nela o coração se excitaria de ânimo naquela covarde intenção que muita mulher tem com os cafajestes declarados: “esse é safado mas sou eu quem vai dar um trato”, “vou retê-lo nas mãos”, “comigo ele muda”. E então por cima dos dedos os olhares suariam ao se tocarem sugestivos e cheios de intenção e ele sentiria prazer vendo que ela estava entregue ao afirmar a sua masculinidade. E assim ele poderia faze-la fêmea. Afinal o homem gosta da mulher porque ela lhe faz sentir-se mais homem ou ele gosta do fato de ele ser homem fazer a mulher ser mais fêmea? Com certa dificuldade porque havia engordado, ela vestiu a calça jeans.
No carro, ele lembrou que não tinha se curado da assadura na coxa. Também não fizera a barba. E não estava tão forte como queria. Fingiria?
Ela saiu de casa com certa elegância. Chamou o táxi e entrou, sentindo-se a pior mulher do mundo. Durante o percurso, o taxista a encarava pelo retrovisor. Corou. Corou mais ainda ao perceber que seus peitos enrijeceram. Mulher gosta mesmo é de ser mulher: ser admirada e possuída: pois há alguma coisa na pose que lhe dá garantias de acerto, ser possuído é sinal de aceitação.
Ele, que há muito não ouvia um elogio, não sabia exatamente se estava no caminho certo. Precisava chegar antes dela porque era cordial. Chegou.
Enquanto ela pensava sobre o que falariam durante o encontro. Não suportava o silêncio. Era melhor falar qualquer idiotice do que denunciar que não possuem afinidade. Ou talvez possuir real afinidade é aceitar o silencio como convidado honroso: quando só estar já basta.
Mas não bastava ter chegado cedo, ele não tinha o que fazer com o próprio corpo. Enfiava as mãos no bolso, mas afinal isso parecia ridículo. Cruzava os braços, mas isso pareceria impaciência. Talvez devesse estar falando no celular quando ela chegasse. Mas isso seria blasé demais. Mas se ficasse ali parado estaria entregando sua fragilidade. Não deveria ter chegado antes. Deveria bancar o “descolado atrasado”. Mas não saiu dali, com medo que ela chegasse no momento em que ele se retirasse. Ficou encostado no poste, com as mãos para trás, um pé no chão e o outro apoiado no poste, fazendo um quatro com as pernas. Assim estaria bem másculo.
Ela pensou em como deveria beija-lo no cumprimento. Não poderia ser aquele cordial, tinha que ter mais sangue. Também não poderia ser aquele muito forte no qual se entorta o pescoço para atingir a bochecha integralmente: esse seria dar o ouro ao bandido e isso seria a morte. Esboçou na mente como seria o meio termo. O taxista continuava encarando-a, às vezes fazendo comentários do tipo “hum-rum”.
- Essa hora o trânsito está mais livre, né?
- Hum-rum.
Ela entortava a cabeça ao máximo, para colher um pouco do vento que vinha do vidro. Fechou os olhos e se deu conta de que não estava mais no clima de não querer sair. Passara por cima da própria frustração. A essa altura já assumira o cheiro da noite.
Chegou. Ela o enxergou já de dentro do táxi, virou a cabeça de súbito para fingir que era, afinal, blasé. Pagou o tarado do motorista e saiu do carro. Fingiu procurá-lo. Ele percebeu sua chegada e olhou para o outro lado. Foi em uníssono mudo que os dois acharam o olhar um do outro. Foram se aproximando.
- Oi, tudo bem?
Deram dois beijinhos e esse fora o primeiro contato físico entre eles naquela noite. Foi tudo tão rápido e inorgânico que ela não percebera o quão máscula estava a pose dele no poste e ele tampouco notara que ela acertara precisamente na intensidade dos dois beijinhos. Entraram no bar, apenas.
Sentaram e pediram um chope. Ele, que tinha tantas dúvidas a respeito de tudo, agora se comportava como o mais perfeito que poderia existir. Ela chamava atenção para os lábios molhados ao passo que às vezes olhava para o nada como se tivesse um mundo ao qual preservava. Enquanto via o cardápio, suportava o silêncio.
Ele fora bem rápido:
- Você está linda.
- Brigada.
Brigada. Brigada, ponto. Ponto e desviou os olhos.
Seria melhor se eles não estivessem lá.
Seria? Ou seria, e como seria, melhor se eles estivessem lá?
Era tarde para o não. Já se deram ao delírio da invasão privada. Comungavam. Nesse momento era melhor que ela não estivesse à mercê dos caprichos dele, ele que como cobra seduzia e a enrolava o pescoço lentamente, ela cujos olhos infantes a prostituíam. Agora já estavam contaminados. Mas contaminados sutilmente: contaminados pelo que o outro representa. Essa era a dor mais doída: a da presença inevitável. A falta de uma invasão genuína, a falta de uma mão que adentrasse na massa e pudesse molda-la e passa-la o rolo: não havia mãos senão intenções irônicas que cutucavam sem ofender: era o castigo de precisar do outro: ou se dizer pedinte: os toques que não atingem, apenas ameaçam.
E eles foram falando das suas vidas e de seus porquês. E iam arredondando a própria fala. Os discursos iam quedando menos disfarçados e mais nobres. A comida ia descendo naturalmente, e o que era de dentro ficava dentro e o que queria ficar fora ia para fora. Assim veria naturalmente a cena qualquer um que estivesse ao lado. Um casal que se descobria, em nuances alternadas.
Mas havia lá, entre eles, algo que ninguém jamais poderia ter visto. Foi um instante em que esqueceram dos jogos e da conquista e se permitiram. Assim: aconteceu, pronto, esquece, não fica voltando toda hora nesse assunto.
Mas aconteceu. E foi o momento em que eles mais construíram. Construíram juntos mas também para eles mesmos, como indivíduos. Tá bem, eu conto. Havia, no meio da mesa, uma parede – invisível – um muro por donde nada traspassava. E à medida que eles iam falando, as palavras iam voltando íntegras para eles, feito squash. Elas saíam meio perdidas e iam voltando mais sólidas, achando seu lugar. O que quero dizer é que enquanto eles conversavam no fundo eles não estavam se ouvindo. Eles estavam falando deles mesmos para eles e assim era a eles mesmos os quem se descobriam na troca. O que era de dentro ficava dentro e o que queria ficar fora ia para fora.
É nesse enraizar para dentro que se constituía a troca. E o outro era aquele fantasiado do outro lado da parede.
- Sabe, como é bom conversar com você – ela disse. – Suas palavras me fazem tão bem.
Não se sabe ao certo aonde eles erraram. Podem mesmo ter acertado. Ou de repente era apenas a forma que encontraram de se comunicarem. Há quem critique. Há quem questione a existência do outro como um outro a ser descoberto. Mas o que tenho visto são espelhos mágicos onde nos revelamos ao tentar o outro.
Tomaram o último gole do último chope. Suas feições nem desconfiaram do que havia acontecido ali. Continuavam entretidas em criar as diversas máscaras. Os olhares escorregaram para dentro e o que ela viu depois do ultimo gole fora bem parecido com o que vira no espelho do táxi. Voltaram ao mundo real, onde salivavam os desejos altivos.
Pediram a conta e ele estava mais homem de si ao fazer o caricato gesto ao garçom. Ao pegar a bolsa ela sentiu-se como a única fêmea que ali era capaz de ser musa e exalar perfume de abelha num simples pegar da bolsa.
Ele disse que ligava e ela disse tudo bem, obrigada. Deram dois beijinhos e foi o segundo contato que tiveram pele-a-pele.