segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Quando Não Entendo

Não entendo como se forma o que nem se vê, como não se vê o que está bem na frente; talvez forjamos que não vemos, nos protegemos, ou talvez a coisa se esconda – mas não vemos e não entendemos e não sabemos como seria se fosse diferente. Talvez meu pecado seja este: querer decifrar o incorpóreo, sendo que o corpóreo é também invisível – quando nos aprofundamos, a coisa some e não é mais. Fosse, saberíamos que não passamos de uma idéia. Sou o princípio de alguma pobreza apropriada, sem fim, sem luta nem resto. Sou inodor porque vivo apenas nas minhas fantasias. E brinco de ser e de não entender. Brinco de existir quando na verdade insisto. Sofro pelas dores não-sofridas, busco no outro a minha dor. Busco no outro o eu que não enxergo, e nem no outro enxergo, pois o outro é outro e não eu. O que é eu? O que completa o que não é eu?
Precisamos esquecer de quem somos ou queremos ser para poder entender. Enquanto acharmos que o mundo se divide entre platéia e público, assim será. Pois então que ninguém me exija definir o indizível, que ninguém queira ver o que não vibra na freqüência dos olhos, que ninguém queira ouvir sentimentos difusos, que ninguém busque em pés alheios a própria nudez. Meus pés descalços guardam consigo a minha própria timidez. Isso é meu segredo. Para outros, os pés são do outro. Só para mim meus pés são meus. Gargalho. Procuro sempre no terceiro o meu primeiro e se eu aceitasse em mim a minha nudez, ninguém mais seria nu. Teremos vergonha o dia que descobrirmos isso. Ao passo que a vergonha não será mais temida.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Noite

“Uma porta só pode ser aberta se estiver fechada” – disse W.
Mas J sabia que aquilo era uma besteira. O homem chegara na lua, por que não poderia abrir uma porta aberta?
“Lógica” – respondeu W.
Que lógica existe em se despachar num foguete, pisar num terreno cratecnoso, cravar uma bandeira e depois voltar com risco de explodir? A cachorrinha deve ter rido de nós.
“Ora, não argumente contra a lógica.” – finalizou W – “se hoje estamos aqui, é por causa dela”.
E J não argumentou, apesar do sofisma que chafurdara em seus ouvidos. Entrou no seu quarto e fechou a porta, pois ela estava aberta. Fechou a janela, ligou o ar-condicionado. Mas não fechou a cortina. A lua é bonita lá no céu. Ninguém sabia, mas à partir do momento em que ele a enxergava ela era só sua. Seu enfeite. Sua instância. Não via bandeira nenhuma. Lógico, pensou.E, embora não soubesse como abrir uma porta aberta, JW, naquele momento, abraçava o mundo.

Mas há a alegria

Mas há a alegria. A alegria mansa que abarca inteiramente e não nos assusta porque é sutil. É nessa alegria que o sentido se faz quando não há razão nenhuma à mercê da ignorância bruta. Essa alegria não se apresenta, oi, como vai, é como fogo que não se vê e nem se toca, apesar de arder por dentro, porque é apenas um estar no mundo.
Há uma alegria que se dá quando não se sabe que se é alegre. Quando se pensa que está sendo alegre, não se está mais. Por isso essa alegria gera tensão depois que se foi alegre com ela. Pois causa a dor da perda. Mas essa alegria é um risco do qual estamos, e ainda bem, reféns; eu, você, qualquer um, quer queira quer não, pode ser a ingrata próxima vítima dessa alegria, quando conheceremos as glórias abstratíssimas e o descaso do não-merecimento. E, apesar de tudo, não adianta fechar-se a essa alegria. Quando presente, é infalível. E sempre vem. Mesmo nos mais rancorosos e nos que não se permitem. Ela pula a guarita e tem o dom da surpresa. Pode-se chamá-la quase de infantil, mas, em verdade, ela é boba o suficiente para ser mal de adultice.
Vivo nessa alegria o quanto posso ser eu, e nesses instantes não há mais nada a ser procurado e nem pensado, e nada pode escapar pelos dedos. Ela aparece justamente quando nos distraímos de querer pegar tudo com os dedos. Por isso, não é aconselhável tentar pegá-la com os dedos: o resultado pode ser desastroso: sorrisos armados, piadas mal-feitas, intenções ecoadas a esmo. Na verdade, a alegria mansa a que me refiro jamais escapa pelos dedos. Nós é que a sobrepomos com nossas tensões e o nosso medo do fim da festa: quando se estouram os balões e, sem querer, sangram junto os corações.
Mas, bem, há, de fato, a alegria: e ela é só cama elástica quando nos lambuza. Basta esquecermos de nós e nossas cobranças. Basta não inventar desculpas para que nossas cobranças não sejam esquecidas. Ela também não é reduzitível, ou somalizável e nem se pode contá-la no jantar, pois seus princípios são meio risíveis. Às vezes uma criança chutando um poste, um mendigo de guarda-chuva, um sapato furado, ou um domingo todo bebível. Enfim, imprevisível. Essa alegria aparece na empatia de um bom encaixe: quando a perfeição se antecipa de ser perfeita. E por isso perde a sua conotação traduzível. Gosto, gosto muito das alegrias sem motivo.

Fragmento

O hoje me deu vontade de sonhar com flores. Que medo que eu tenho de sonhar com flores! Como o desespero de olhar para o céu para verificar se ele ainda está lá. Conferir o azul do céu me prova que ainda estou. Mas o que prova que sou? Ah, estes sonhos... Temê-los é a expressão máxima de ser. Tal qual o céu. Que vontade de ser flores sem sabê-lo.

Beato

Odeio filhos abraçados,
Odeio as expressões fotografadas,
Tenho ódio dos cabelos de chapinha.
Odeio as inversões sempre avisadas,
Odeio estômagos embrulhados,
fingindo de amigáveis.
Odeio olhares ensaiados,
Odeio o pódio dos inocentes,
a fumaça dos cérebros
prepotentes.
Odeio o mijo dos leões,
demarcando o que é

porque disse que era.
Odeio as falas entre aspas
com ares baforados,
Odeio a força oculta
dos elefantes temerosos.
Odeio, e admito, tudo o que
me denuncia:
que me foca fraco
e humilhado.
Odeio, e sempre, não ser
tão bom quanto o meu ódio.
Odeio e não sei como
que de tanto ódio
por tudo isso
surge tanto amor
por tudo isso.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Todas as pedras

Taca-me todas as pedras.
Dá-me todas as almas.
Furiosas e tão calmas
quanto
um açúcar
de uma cana ceifada.

Taca-me todas as pedras
porque delas
tirarei um néctar
que não
compreendes.

Esconde agulhas nos meus tapetes
para que não desfile.
Só não me ensines a andar.

Só não me ensines a nadar.
Só não construas muros por mim.
Só não amorteças demais as minhas quedas.
Para que me doa.