terça-feira, 31 de julho de 2007

Por um Triz

Oco como pedradas tinindo o cristal, sem jamais quebrá-lo, apenas para testar seus limites e ameaça-lo, brincando de encontrar sua taxa de resistência média, como num cálculo furado e esquizofrênico. Brincando de abraçar o mundo, esse menino não fala nada porque não se vê. Ou porque tem medo de jorrar palavras, e quando o faz solidifica pedras no caminho – e com tanto medo de esculpi-las e deforma-las ele as engole antes de serem pedras: ele engana seu fluido que não flui: atravanca, emperra. Pensa coisas mais fluídicas e num lúdico ao avesso ele desata suas imagens fora de foco, ele tece meias com o cuidado de quem já furou o dedo e nem dói mais. Esse menino não busca mais às palavras, ele é todo sonho, e se cobre com a folha do arbusto – ele sonha-se em ser filho do mundo. E se acolhe. Tudo para abraçar a si mesmo.
Foge das palavras repetidas, dos sentimentos viciosos, do mesmo erro dos mesmos. Ela queria um céu, mas ganhou uma lata. E não sabe o que fazer com a lata depois que já se bebeu tudo. Ele não quer fazer escultura pois tem medo de perder sua lata – e a forma da lata é uma forma sentida só por ele e é tão dele quanto nunca foi lata. Por isso contempla a lata, apenas. Aceitando-a. Mesmo que para isso lhe seja necessário a servidão, o cárcere da própria forma da lata. Seus olhos permeiam lentamente além do contorno e menos lata e menos ele se encontram ali. Numa súplica de comunicação, ele não fala, mas quer ser ouvido.
Talvez fosse melhor que lhe pintassem um retrato. Assim poderia ser o que quiser. Herói. Anjo. Sábio com barba branca e sorriso meigo. Com aquele olhar maduro e certo que no menino ainda é só numa esperança e numa referência torta. Pois ele usa do que lhe é ofuscado e premisso ainda para servir-lhe de comparação. No retrato, poderia ser o melhor dele o qual nem acredita. E poderia deixar lá todas as suas cobranças.
E então, guardado numa pincelada, como uma redoma épica, ele poderia ser todo seus medos novamente. E não precisaria cobrir-se no arbusto, como se fosse feio demais para mostra-se. O menino não se achava digno de uma beleza. Mas sendo belo na figura, ele poderia permitir-se ao fracasso. E abrir a lata e errar com ela. E sê-la sem teme-la. Conjugues. Ele poderia então arriscar um mergulho nos seus labirintos e meandros , tão sofisticados e herméticos que ele precisa fingir ser outra coisa – que é só criança burra, que é só um pirralho oco. Mas assim ele se entendia. E vivia mais longe de todos porque assim era melhor. Não fazia parte do mundo que afinal era seu pai. Ou fazia tanta parte que fugia de medo. E sabia que o leão era o rei da selva porque o elefante não sabia da força que tem. Quando fosse pai, o menino seria todo uma folha de arbusto.Pegou sua lata, e pensou, ou nem pensou, tão irreverente que era ser por um triz: a enterrou: pobre de espírito que era. Iria rega-la todo o dia. E talvez um dia nasceria uma árvore de latas. E poderia fazer quantas esculturas quisesse, pois a criação seria inesgotável, enquanto a sua criança ainda o quisesse pensar em formas. Gostava de errar quando não perdia nada. Queria garantias – logo nesse mundo onde as catástrofes sempre esquecem de mandar convite. Mas tinha um plano: iria enterrar-se também. Sabia que não era o modo certo de fazer as coisas. Talvez o certo seria usar de um só de si e jogar-se no abismo. Mas não sabia fazer assim. Pensou que se ficasse oculto aos olhos do sol que julgam tanto e definem e amoldam, pensou que poderia regar-se todo o dia lentamente, e então dele brotariam milhões, e de tantos “ele” poderia com cada um ser uma forma, e os que não desse certo jogaria fora. Como Deus faz com os infinitos planetas. Talvez ele assim conseguiria abusar-se e obter-se com o melhor rendimento possível. Talvez desse certo. Era arriscado. Mas esse era seu modo torpe de fazer as coisas. Tão irreverente que era ser por um triz.

Quando a Lógica Falha

E quando o excesso de gentileza, ao invés de ceder, nos engole? Aprendemos em matemática que menos com menos dá mais – porque se digo “não não quero”, significa que eu sim quero. E se digo “sim não quero”, significa que não quero, portanto mais com menos dá menos e menos com mais dá menos. No entanto, já pensa o leitor astuto que sabe que mais com mais sempre dará mais – pois “sim sim quero” é confirmar a afirmação já afirmada: é portanto afirmar três vezes (uma do sim, outra do sim, outra do quero). Engana-se.
Estava andando na rua. Pessoas transitavam abstratas na estreites calçada. Eis que passa um homem gordo. Nada contra gordos. Inclusive, já diz a piada, que se todos fossem gordos as pessoas estariam mais próximas. Estava suado. Seu pisar marchado endoidecia a sujeira do chão. Cruzava meu caminho. Não cabíamos os dois na mesma rua.
Nesses casos dinâmicos, não há muito pensamento: ou você vira a direita ou a esquerda, e transpassa-o. Limpo. Talvez com algum suor absorvido. Mas vivo. O que já vale alguma coisa.
Não é um ato de nojo, mas pura generosidade. Entenda. Não sou ridículo, ao contrário, sou sempre do tipo que murcha os ombros para os outros passarem, pois há aqueles cujo barulho do piso, se traduzido, é o mesmo que “Sai da minha frente! Xispa!”
Ou seja: sou gentil. Decido pela direita.
Pior do que ser gentil é ver que o sujeito – a quem eu já estava ficando secretamente apaixonado – também o é. E titubeou para o mesmo lado.
E então começa uma pequena disputa de altruísmo. Um quer ceder o lugar ao outro, mas vamos sempre para os mesmo lugares. Ficamos exilados na própria intenção. Cárceres da solidariedade mútua. Isso dura alguns segundos – mas é o suficiente para uma confusão mental. Afinal, mais com mais deu menos. A anti-lógica revitaliza a esperança de que não somos binômios quadrados perfeitos. Somos errantes de boa vontade. Pobre de nós, que se construíssemos calçadas maiores libertaríamos o caminho!

sábado, 28 de julho de 2007

O Primeiro Corte

Mas isso acontece quando se foge de si mesmo. Torna-se seco. Murcho. Fujo do que sou. E o que sou? O que sou do que não sou? Que vim aqui para arrebentar a boca do balão, estrondar o perfeito e estraçalhar a faca no bolo, sem a falsa piedade do primeiro corte dos aniversariantes que não querem estragar a goma enfeitada. Ou então esse exterminador de laços no cabelo é uma farsa, e me jogo na farsa – com medo de me enganar a mim com o meu eu-farsante, que de tão desinteressante sufoca calado: esse meu lado bicho acostumado a rir às pessoas por trás do vidro no zoológico. Esse meu eu anti-lógico que, com medo de assassinar um dia, se assassina.
Esse meu fermento torto. De um bolo que para não ser um dia despedaçado resolve nem crescer na fôrma. Sou isso. Uma possibilidade de um doce querido. Que quer ser devorado, salivado, engolido. E só assim compreendido. Sou essa expectativa na fôrma que água gostoso. Numa esperança. No coçar dos dedos. Nas unhas sujas das crianças. E nos brilhos ásperos das pupilas. Me perdi completamente em ser possível ser um bolo. E ser enfeitado. E ser bonito. Ai, mas para que ter medo de crescer?
Sou novo e ainda existo no caminho que não existe. Não existe porque eu não quero. Porque eu escolho o doce que sou. E posso ser amargo, para que me descortinem. Só para me xingarem. Para estrondar a festinha colorida dos que esperam sem se debaterem. Mas não sou isso. Ainda assim sou uma farsa.
Mas como estou ficando bonito! Mais fermento, mais açúcar? Menos essências? Menos “eus”, mais desencontros. Mais portas e menos janelas. Não dá, não sou mais tela, não sou mais brinquedo. Estou me decorando. Estou compondo a música do parabéns. É agora. As palmas fazem fundo, mas não é as palmas que quero. Quero o depois. Quero o silêncio após os parabéns. Aquele vão que parece descortinar por um segundo a felicidade forjada, a alegria esculpida e maquiada – o cabelo passado a ferro. Aquele abismo torrencial a que nos prestamos a quase arriscar, mas somos medrosos! Estúpidos. Comemos o bolo. Comemos o bolo para fugir do silêncio seco que incomoda, dos perfumes doces que atritam, das inquietudes que deslizam na palma, e que mesmo após as palmas continuam lá. O silêncio que me desnuda e me descortina e nele não me enfrento porque sou todo granulado. E jamais inteiro.
Que venha o primeiro corte! Vem junto com o desejo, de contrapeso. Que desejo? A real intenção ficou a esmo no segundo anterior. E todos os desejos são trocados. Como um filme dublado. Ouve-se uma coisa mas no fundo sabemos que é outra a coisa ouvida. E sabemos que somos incapazes de decifra-la. Que venha o doce!
E nossas escolhas permanecem menos escolhidas. O fogo foi embora com o sopro, ou o sopro engoliu o fogo? Somos fogo dissipado e por isso mesmo não escolhemos com vontade, apenas queimamos tudo que é para ser queimado? Queremos todos os gostos, todos os cheiros, frios e ardidos, tudo que umidece e embabece a alma como pele grudenta e melada de... amor?
Pois as velas são guardadas na gaveta, e do bolo lindo que até fotografamos só resta um convite rasgado, uma lembrança a mais armazenada. E esquecemos das marcas e que tudo nos marca, e continuamos a marcar sem saber e mudar e reproduzir e criar.
Sim, vamos destruir o bolo, vamos sacia-lo, vamos sê-lo mesmo sem saber, mas pensar que seremos sempre aquilo que mais nos faz falta e um dia olharemos para o passado com maturidade e altivez de quem já meteu a mão na farinha com leite e ovos e já fez crescer com dor e suspeita. Sentimos um frisson perigoso e belo e quando os nossos reais desejos se manifestarem já não serão mais desejos. Dar o primeiro corte é renascer. É recriar. E podemos dormir contentes. Sabendo que viver é transformar. Mesmo na ponta da faca. Mesmo na fôrma.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Mesmo dos mesmos

O segredo dos outros é sempre muito mais importante para os outros do que para nós. Vivemos impressionantemente condensados a esse hermeticismo de não sermos compreendidos, de resguardar nossas expressões e impressões que a nós são elevadas a potencias inexpressíveis e tão ridículas a nossa razão. Temos dentro de nós tudo o que é sagrado para nós mesmos. E apenas sagrado para nós. E por isso mesmo sagrado. O mais inacreditável é que quando nos resolvem contar um segredo somos os primeiros a implorar: “Conte, conte!” Mesmo esse conte sendo mais valioso para o contador, precisamos doar essa vontade de ouvir para que assim brinquemos de comunicar – fingimos ser aqueles animais de raciocínio evoluído. E no cessar desse fingimento encontra-se a sem-gracisse do segredo contado, a decepção de não sermos tão importantes para o outro quanto somos para nós.
É por isso que finjo. É por isso que visto minhas roupas e cruzo as pernas em público. Ergo uma postura. Finjo que não quero, que não gosto, que não sou. Finjo que sobrepujei o útero, quando na verdade quero sim voltar às águas. Ao calor.
Finjo e desse fingimento surge a conversa fingida, tão simulada quanto inacabada: aquele sorriso para sempre em suspensão. Em suspensão algo que não acontece. Por que não queremos, porque fingimos bem. Finjo ter mãos fortes e unhas feitas, finjo comer bem e ser saudável, finjo ser rico e ter muitos amigos.
Mas se eu pudesse por um momento revelar-me. Sem a blindagem do ego. Sem a modéstia degustada. Se eu pudesse mostrar-me a palavras. Se pudesse tocar com as palavras. Musicaria pensamentos. Atingiria os ventos. Se eu pudesse ser brega! Se eu pudesse falar das flores que tranco em latas de alumínio. Se eu pudesse rir dos gestos grotescos, me abrir ao olhar meigo. Se eu pudesse traduzir o quanto me tocam as pessoas, que com um mínimo me vasculham, me atropelam. Se eu pudesse ousar sobre o abraço e perder o medo de sentir o bom do entregar-se: sempre ao abraçar alguém querido me pergunto qual deve ser o tempo do abraço, se já está bom ou o que vai pensar o outro se durar mais. Sempre o medo que me chuta ao invés de abraçar-se conosco.
E se eu pudesse mais. Gritaria por nomes outrora recusados. Suplicaria pela presença, almejaria ser todo mundo. Almejaria ser mãos. Se eu pudesse abusaria calar de vez em quando. Se eu pudesse ser eu e então compreendido, começaria por deixar-me ser água escorrendo pelo ralo quando me sinto apavorado. Assumiria que derreto sem querer. Confessaria que basta uma piscada para me derrubar.
E se tomasse coragem, espalharia amor. Pois amo a vida. E se eu pudesse esborrachar-me, chafurdar-me nos precipícios alheios, até relataria que gosto das coisas. E que as necessito. E escreveria o quanto sou pobre ainda. E descreveria meus dias em casa vendo televisão. E desabafaria minha solidão. Se eu pudesse então preencher-me com os quês alheios, me enrolaria no lençol e tremeria de frio. À espera do beijo de boa noite da mamãe.
Se fosse mais completo ainda, choraria quieto. Ao som de música religiosa. Sem medo da pieguice. E assistiria meus ídolos no palco. E quando eles me olhassem lá de cima, trocaríamos amor. Na confiança certeira de que estamos nos dependendo para fazer segurar a nossa segurança mútua. Nos agarramos e por isso não caímos.
Então, por favor, conte-me seus segredos. Mesmo que a princípio não me valham nada. Mesmo que não seja eu mesmo. Por favor, não fujamos nem finjamos que o que esperamos chegará e lá seremos. Sem aborto. Mesmo que caiamos sempre no mesmo. O mesmo dos mesmos.

domingo, 22 de julho de 2007

Compartilhar

Quero hoje empregar aqui o melhor de mim. Mas se tiro de mim o melhor, o que me restará em dentro? Não quero ficar com o que sobra depois da satisfação mastigada, não quero apenas com os farelos e restos de molho e os caprichos depois do suor. Então devo deixar aqui apenas o pior de mim? Quem sabe lá meus medos, angústias, os pecados que cometo em segredo, os olhares fulminantes que distribuí quando me viraram as costas, devo deixar aqui meu lado brutal e sarcástico? Mas assim o que estaria eu distribuindo? Quero distribuir o bom do ser. E isso é divino. Talvez tenha encontrado uma definição para o amor verdadeiro: conseguir colocar aqui o melhor de mim sem temer restar-me apenas as sobras, e talvez assim o meu lado bom será compartilhado e não dividido. Divisão é subtração em termos. Compartilhar é partilhar junto. E partilhar é amor apenas. Será que é isso? Compartilhar? É, estou inteiro e melhor que antes.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Fugido

Era a primeira vez que topara com isso e não estava acostumado a sair. Viu como eram brilhantes os olhos alheios, ou qualquer coisa alheia, e se assustou. Fugiu feito um beato pobre e chorão. Mas fugiu e fugiu bem fugido, como se para isso sim fosse macho e honroso. E não pensava. Não tinha mais porquê ou sequer motivação para reflexões que muito provavelmente apenas denunciariam sua estupidez. Ele agora era hermético e caminhava só. Roia as unhas e não havia nada além que pudesse fazer. Essa insegurança do fazer o alertara outrora sobre como mastigar suas próprias inquietudes. Não sabia domá-las e se achava feito de açúcar: como sentir seu gosto? Ele tantas vezes formigava seu próprio peito, sem assumir do mel que este produzia porque afinal era rígido e forte e não vacilava nos buracos estreitos e omissos da rua em que caminhava; e por isso caminhava, feito criança no parque com algodão doce, espalhando pipoca e doando energia; não, não era assim, era como um bandido fugitivo, como um monstro escondendo-se (desses que assustam para não se assustarem), era como um assassino, um infanticida, matando de vez a sua criança. Queria rodar nas alturas. Mas só pensava em fumaça e cinzas. Afinal era disso que constituíra-se em seu percurso mágico. Fechou os olhos, parou de andar. E caiu em si mesmo, num lapso de amor. Sentou-se ali na poeira e abraçou-se. Nunca mais abriria mão de si. Rolou pelo chão e prometera que não seria sua presa. Sentiu seus braços sobre a terra, e por um vislumbre subitamente humano seria capaz de abraçar o mundo num só abraço. Ele, tão pequeno e supérfluo às dinâmicas de outrem, foi crescendo, crescendo e inflando feito um balão colorido e sangrento. Voava no chão como nunca voaria pelos ares. Aqueceu-se e deixou-se perder nos sentidos. Como se toda a vida se esgotasse àquele chão. E ali ele todo estaria, e seria, fosse santo, porco ou fosse mãos.

Enfarte

Estou farto.
Farto de quem diz “sei lá” como se fosse lá para saber.
Farto de dentes carcomidos,
de bocas entupidas de massa
que escarram nas massas;
Estou farto de orações citoplasmáticas
Farto de barrigas audaciosas
Farto de vida pré-datada
De cheques sem fundo,
De baús oxidados.
Estou farto da abundância de quem não tem nada,
Do excesso pecaminoso do mal-logrado
Estou enfermo de cores Mc Donald’s
Farto de arrotar coca-cola;
Que fartura é a falta!
Como o azul é tão tênue que nos cega
Como tudo atropela o próprio apelo;
Nossos gritos estremes abafados:
- Incompetentes! Infartados.
Nossas escolhas são ditadas pela placa.
Estou farto do sufoco na garganta;
farto da lasanha à bolonhesa.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

A Troca

Telefonaram-se e marcaram um encontro. Ela, a princípio, não queria – estava jogada no sofá deixando a televisão falar sozinha: não queria dar-se ao trabalho de ser alguma coisa. Ele, acabara de correr oito quilômetros e estava bem. Ela aceitou, como um berro pra dentro.
Ele tomou banho e perfumou-se, pensando no estilo que faria. Cortou as unhas para não parecer selvagem demais e passaria um gel no cabelo para ser mais elegante. Não. Deixaria um cabelo jogado, estilo rebelde. Estava velho demais? Bermudão descolado ou manga rolet? Ela botaria qualquer roupa. Prendeu o cabelo sujo para trás, disfarçando a má-vontade de parir a todo encontro. Pois era assim: ela paria e ele expelia. E para expelir ele se aprontava: e jogava fora o que não queria mais. Para ela era mais doloroso. Para ele era doloroso depois que se jogava fora: ficava nu e vazio e não sabia o que fazer com as mãos. Suava. Ela pegara uma gota de perfume, para lambuzar no tédio: esfregava no pescoço arrepiado e pensava que aquele cheiro sumiria antes que ela pudesse ser ela. Mas afinal se perfumava para o mundo, só para o mundo ter o prazer de consumi-la. Ele pegou o carro, conferiu os cds de música romântica que tinha. Pensou em música erudita. Mudou de idéia. Pensou em Caetano, Chico. Pensou em Caetano e Chico interpretados por Bethânia. Mudou. Muito forte. Assustaria.
Vestiu um salto e a fivela a feria. Calça jeans ou mini-saia? Ele não gostava de mulher de jeans. Gostava de pernas a mostra como mulherão-selvagem, mas cruzadas sutilmente como “não-vem-que-não-tem”, mas não muito cruzadas do tipo “não-há-vagas”: gostava mesmo das pernas cruzadas de forma “sou seletiva, esforce-se” e então ele iria aos poucos com os dedos grossos – e o coração morrendo de medo – acariciando, passando o recado “sou macho mas domesticável” e então nela o coração se excitaria de ânimo naquela covarde intenção que muita mulher tem com os cafajestes declarados: “esse é safado mas sou eu quem vai dar um trato”, “vou retê-lo nas mãos”, “comigo ele muda”. E então por cima dos dedos os olhares suariam ao se tocarem sugestivos e cheios de intenção e ele sentiria prazer vendo que ela estava entregue ao afirmar a sua masculinidade. E assim ele poderia faze-la fêmea. Afinal o homem gosta da mulher porque ela lhe faz sentir-se mais homem ou ele gosta do fato de ele ser homem fazer a mulher ser mais fêmea? Com certa dificuldade porque havia engordado, ela vestiu a calça jeans.
No carro, ele lembrou que não tinha se curado da assadura na coxa. Também não fizera a barba. E não estava tão forte como queria. Fingiria?
Ela saiu de casa com certa elegância. Chamou o táxi e entrou, sentindo-se a pior mulher do mundo. Durante o percurso, o taxista a encarava pelo retrovisor. Corou. Corou mais ainda ao perceber que seus peitos enrijeceram. Mulher gosta mesmo é de ser mulher: ser admirada e possuída: pois há alguma coisa na pose que lhe dá garantias de acerto, ser possuído é sinal de aceitação.
Ele, que há muito não ouvia um elogio, não sabia exatamente se estava no caminho certo. Precisava chegar antes dela porque era cordial. Chegou.
Enquanto ela pensava sobre o que falariam durante o encontro. Não suportava o silêncio. Era melhor falar qualquer idiotice do que denunciar que não possuem afinidade. Ou talvez possuir real afinidade é aceitar o silencio como convidado honroso: quando só estar já basta.
Mas não bastava ter chegado cedo, ele não tinha o que fazer com o próprio corpo. Enfiava as mãos no bolso, mas afinal isso parecia ridículo. Cruzava os braços, mas isso pareceria impaciência. Talvez devesse estar falando no celular quando ela chegasse. Mas isso seria blasé demais. Mas se ficasse ali parado estaria entregando sua fragilidade. Não deveria ter chegado antes. Deveria bancar o “descolado atrasado”. Mas não saiu dali, com medo que ela chegasse no momento em que ele se retirasse. Ficou encostado no poste, com as mãos para trás, um pé no chão e o outro apoiado no poste, fazendo um quatro com as pernas. Assim estaria bem másculo.
Ela pensou em como deveria beija-lo no cumprimento. Não poderia ser aquele cordial, tinha que ter mais sangue. Também não poderia ser aquele muito forte no qual se entorta o pescoço para atingir a bochecha integralmente: esse seria dar o ouro ao bandido e isso seria a morte. Esboçou na mente como seria o meio termo. O taxista continuava encarando-a, às vezes fazendo comentários do tipo “hum-rum”.
- Essa hora o trânsito está mais livre, né?
- Hum-rum.
Ela entortava a cabeça ao máximo, para colher um pouco do vento que vinha do vidro. Fechou os olhos e se deu conta de que não estava mais no clima de não querer sair. Passara por cima da própria frustração. A essa altura já assumira o cheiro da noite.
Chegou. Ela o enxergou já de dentro do táxi, virou a cabeça de súbito para fingir que era, afinal, blasé. Pagou o tarado do motorista e saiu do carro. Fingiu procurá-lo. Ele percebeu sua chegada e olhou para o outro lado. Foi em uníssono mudo que os dois acharam o olhar um do outro. Foram se aproximando.
- Oi, tudo bem?
Deram dois beijinhos e esse fora o primeiro contato físico entre eles naquela noite. Foi tudo tão rápido e inorgânico que ela não percebera o quão máscula estava a pose dele no poste e ele tampouco notara que ela acertara precisamente na intensidade dos dois beijinhos. Entraram no bar, apenas.
Sentaram e pediram um chope. Ele, que tinha tantas dúvidas a respeito de tudo, agora se comportava como o mais perfeito que poderia existir. Ela chamava atenção para os lábios molhados ao passo que às vezes olhava para o nada como se tivesse um mundo ao qual preservava. Enquanto via o cardápio, suportava o silêncio.
Ele fora bem rápido:
- Você está linda.
- Brigada.
Brigada. Brigada, ponto. Ponto e desviou os olhos.
Seria melhor se eles não estivessem lá.
Seria? Ou seria, e como seria, melhor se eles estivessem lá?
Era tarde para o não. Já se deram ao delírio da invasão privada. Comungavam. Nesse momento era melhor que ela não estivesse à mercê dos caprichos dele, ele que como cobra seduzia e a enrolava o pescoço lentamente, ela cujos olhos infantes a prostituíam. Agora já estavam contaminados. Mas contaminados sutilmente: contaminados pelo que o outro representa. Essa era a dor mais doída: a da presença inevitável. A falta de uma invasão genuína, a falta de uma mão que adentrasse na massa e pudesse molda-la e passa-la o rolo: não havia mãos senão intenções irônicas que cutucavam sem ofender: era o castigo de precisar do outro: ou se dizer pedinte: os toques que não atingem, apenas ameaçam.
E eles foram falando das suas vidas e de seus porquês. E iam arredondando a própria fala. Os discursos iam quedando menos disfarçados e mais nobres. A comida ia descendo naturalmente, e o que era de dentro ficava dentro e o que queria ficar fora ia para fora. Assim veria naturalmente a cena qualquer um que estivesse ao lado. Um casal que se descobria, em nuances alternadas.
Mas havia lá, entre eles, algo que ninguém jamais poderia ter visto. Foi um instante em que esqueceram dos jogos e da conquista e se permitiram. Assim: aconteceu, pronto, esquece, não fica voltando toda hora nesse assunto.
Mas aconteceu. E foi o momento em que eles mais construíram. Construíram juntos mas também para eles mesmos, como indivíduos. Tá bem, eu conto. Havia, no meio da mesa, uma parede – invisível – um muro por donde nada traspassava. E à medida que eles iam falando, as palavras iam voltando íntegras para eles, feito squash. Elas saíam meio perdidas e iam voltando mais sólidas, achando seu lugar. O que quero dizer é que enquanto eles conversavam no fundo eles não estavam se ouvindo. Eles estavam falando deles mesmos para eles e assim era a eles mesmos os quem se descobriam na troca. O que era de dentro ficava dentro e o que queria ficar fora ia para fora.
É nesse enraizar para dentro que se constituía a troca. E o outro era aquele fantasiado do outro lado da parede.
- Sabe, como é bom conversar com você – ela disse. – Suas palavras me fazem tão bem.
Não se sabe ao certo aonde eles erraram. Podem mesmo ter acertado. Ou de repente era apenas a forma que encontraram de se comunicarem. Há quem critique. Há quem questione a existência do outro como um outro a ser descoberto. Mas o que tenho visto são espelhos mágicos onde nos revelamos ao tentar o outro.
Tomaram o último gole do último chope. Suas feições nem desconfiaram do que havia acontecido ali. Continuavam entretidas em criar as diversas máscaras. Os olhares escorregaram para dentro e o que ela viu depois do ultimo gole fora bem parecido com o que vira no espelho do táxi. Voltaram ao mundo real, onde salivavam os desejos altivos.
Pediram a conta e ele estava mais homem de si ao fazer o caricato gesto ao garçom. Ao pegar a bolsa ela sentiu-se como a única fêmea que ali era capaz de ser musa e exalar perfume de abelha num simples pegar da bolsa.
Ele disse que ligava e ela disse tudo bem, obrigada. Deram dois beijinhos e foi o segundo contato que tiveram pele-a-pele.

Tantas Línguas

São tantas línguas, suores, são tantos dedos desencontrados que se enfiam aonde podem. Há o que é íntimo meu e jamais exalo. Se ejaculo é porque não quero mais. Quisesse, guardava para mim.
Se me dôo a cada instante – e me reservo no mesmo – é culpa desse desejo incessante, que bate na porta mas é frio – tão frio quanto sou na madrugada, quieto, comedido; porque derruba casas? Eu, meu vento inóspito. Ah, se eu pudesse apenas construir, instruiria? E o que faria do que borrava ruídos e arranhões? Meu canhão cego procura coordenadas. Minha lucidez tombada nega qualquer definição. Fico sempre no vão da porta, entre a sombra e a entrada.

Entre Apêlos e Desespero

- Bom dia, senhor.
- Oi!! Quanto tempo! Eu não acredito!
- O que o senhor vai querer?
- Você mudou, está diferente. Cortou o cabelo?
- O senhor já conhece as nossas promoções? Temos uma novidade no...
- Desculpe, eu estou tão confuso hoje. Tá tudo tão no corre-corre...
- Temos sunday de baunilha com paçoca extra.
- Você emagreceu, foi isso.
- Hoje, especialmente, pedindo um cheese-burger você ganha uma Coca 300 ml.
- Qual é mesmo o seu nome?
- Com mais quarenta centavos, apenas, trocamos por uma de 500.
- E essas olheiras? Tem trabalhado muito?
- Temos também novos sucos especiais de verão: cupuaçu, manga, açaí...
- Senta aí. Toma um refrigerante comigo.
- Qualquer um por apenas três e cinqüenta.
- Você não bebe? Uma água, a gente toma uma água!
- Com gelo e limão?
- Claro, mas, me diga... o que tem feito? E sua mãe? Está melhor?
- Mais alguma coisa?
- E seu irmão? Passou no vestibular?
- Seu pedido sairá em cinco minutos, senhor.
- Espere! Não vá embora. Fique. Você é importante para mim.
- Dá dois reais. Vai querer a notinha?
- Não, mas...
- Caixa livre. Próximo.
- Desculpe. Hoje está tudo muito confuso para mim.