segunda-feira, 23 de julho de 2007

Mesmo dos mesmos

O segredo dos outros é sempre muito mais importante para os outros do que para nós. Vivemos impressionantemente condensados a esse hermeticismo de não sermos compreendidos, de resguardar nossas expressões e impressões que a nós são elevadas a potencias inexpressíveis e tão ridículas a nossa razão. Temos dentro de nós tudo o que é sagrado para nós mesmos. E apenas sagrado para nós. E por isso mesmo sagrado. O mais inacreditável é que quando nos resolvem contar um segredo somos os primeiros a implorar: “Conte, conte!” Mesmo esse conte sendo mais valioso para o contador, precisamos doar essa vontade de ouvir para que assim brinquemos de comunicar – fingimos ser aqueles animais de raciocínio evoluído. E no cessar desse fingimento encontra-se a sem-gracisse do segredo contado, a decepção de não sermos tão importantes para o outro quanto somos para nós.
É por isso que finjo. É por isso que visto minhas roupas e cruzo as pernas em público. Ergo uma postura. Finjo que não quero, que não gosto, que não sou. Finjo que sobrepujei o útero, quando na verdade quero sim voltar às águas. Ao calor.
Finjo e desse fingimento surge a conversa fingida, tão simulada quanto inacabada: aquele sorriso para sempre em suspensão. Em suspensão algo que não acontece. Por que não queremos, porque fingimos bem. Finjo ter mãos fortes e unhas feitas, finjo comer bem e ser saudável, finjo ser rico e ter muitos amigos.
Mas se eu pudesse por um momento revelar-me. Sem a blindagem do ego. Sem a modéstia degustada. Se eu pudesse mostrar-me a palavras. Se pudesse tocar com as palavras. Musicaria pensamentos. Atingiria os ventos. Se eu pudesse ser brega! Se eu pudesse falar das flores que tranco em latas de alumínio. Se eu pudesse rir dos gestos grotescos, me abrir ao olhar meigo. Se eu pudesse traduzir o quanto me tocam as pessoas, que com um mínimo me vasculham, me atropelam. Se eu pudesse ousar sobre o abraço e perder o medo de sentir o bom do entregar-se: sempre ao abraçar alguém querido me pergunto qual deve ser o tempo do abraço, se já está bom ou o que vai pensar o outro se durar mais. Sempre o medo que me chuta ao invés de abraçar-se conosco.
E se eu pudesse mais. Gritaria por nomes outrora recusados. Suplicaria pela presença, almejaria ser todo mundo. Almejaria ser mãos. Se eu pudesse abusaria calar de vez em quando. Se eu pudesse ser eu e então compreendido, começaria por deixar-me ser água escorrendo pelo ralo quando me sinto apavorado. Assumiria que derreto sem querer. Confessaria que basta uma piscada para me derrubar.
E se tomasse coragem, espalharia amor. Pois amo a vida. E se eu pudesse esborrachar-me, chafurdar-me nos precipícios alheios, até relataria que gosto das coisas. E que as necessito. E escreveria o quanto sou pobre ainda. E descreveria meus dias em casa vendo televisão. E desabafaria minha solidão. Se eu pudesse então preencher-me com os quês alheios, me enrolaria no lençol e tremeria de frio. À espera do beijo de boa noite da mamãe.
Se fosse mais completo ainda, choraria quieto. Ao som de música religiosa. Sem medo da pieguice. E assistiria meus ídolos no palco. E quando eles me olhassem lá de cima, trocaríamos amor. Na confiança certeira de que estamos nos dependendo para fazer segurar a nossa segurança mútua. Nos agarramos e por isso não caímos.
Então, por favor, conte-me seus segredos. Mesmo que a princípio não me valham nada. Mesmo que não seja eu mesmo. Por favor, não fujamos nem finjamos que o que esperamos chegará e lá seremos. Sem aborto. Mesmo que caiamos sempre no mesmo. O mesmo dos mesmos.