sábado, 18 de agosto de 2007

O Complexo de Vaselina

Havia ultrapassado obstáculos, subido montanhas, havia transposto o intransponível. Tudo para chegar a um lugar o qual não o queria, chegar em aonde ignoravam seu suor e seus cálculos meticulosos; ele havia estalado os ossos guiado pelo foco obsessivo de ter uma meta. E depois dessa meta ele todo era o próprio destino o qual almejava com tanto esforço; e o próprio esforço seria a recompensa querida – a garantia involuntária – quando nada mais valia que não fosse o próprio movimento do punho abrindo-e-fechando. E disto nem tinha consciência quando seria ele ou quando não o seria, porque toda sua luta era apenas a forma como se constituíra, e a partir disso não nasciam flores e nem quebravam pedras em areias, apenas aumentavam seus níveis de consciência. Estar vivo, então, era apenas um objetivo: ultrapassar-se. E de tão complexo ele apenas seguia, pusilânime, sendo a surdez seu escudo arbitrário.
Ela criava era em seu trono, com seu longo vestido branco e sua coroa de flores, chorando uma perda ainda não perdida – soluçava uma busca pela própria busca: ela estática quando a primavera lhe sorria morna: mas um vento gelado lhe encontrara a nuca; ela postava de esfinge e apunhalava em si a estátua de princesa: e seu choro era tão seco quanto seu coração, mordendo a fronha do travesseiro, contendo os pulsos de paixão, adormecia. Seus cabelos longos desenhavam no ar seu próprio medo: era uma presença imposta ao espaço, e doía mais nela do que nos turistas: ser mais salgada para si enquanto a língua fomenta em desgosto. Havia sobre ela e seu trono uma luz que predicava, alheia, mais uma sombra que uma forma: um monumento iluminado com a luz fria dos hospitais.
Ele a buscava porque lhe queria bem. E ela era o lugar que gozava ao ignorar dele a necessidade bruta.
Mas seus caminhos haviam se cruzado, naquele apelo indelével que abarca os que respiram: dançavam em tons diferentes mas por um segundo foram obrigados a entrar em sintonia. Embora essa obrigação não significasse uma conseqüência.
Pois ao longo da trajetória penosa eles sempre caíam no arroto fácil do movediço: e por mais que dessem as mãos jamais eram as mãos que se encontravam, eram apenas pele, atrito, cor e forma. Buscavam o que naquela relação haveria de essencial: mas só acham as penas e os pêlos: o fígado esmiuçador seria uma impossibilidade sagrada? Por que não chegavam nunca ao que era essencial? Ao cerne grosso e rugoso como um intestino, no que tudo estaria esclarecido?
Mito. Para chegar até ela ele teve que devastar florestas sacramentais, teve que enforcar dragões invictos, teve que atravessar labirintos históricos. Passara por cima dos tabus e do imperfeito. Estivera acima de qualquer convenção ou possibilidade retórica. E tudo isso por um amor às favas do nojo e da estranheza. E tão sedutor quanto. Com seus mistérios refogados.
Ela criava monstros e os apresentava ao cavalheiro, dificultando sua vinda, impermeabilizando a sua fobia. Não sabia em nome de quê agia ou a qual legado restariam suas odisséias entroncáveis. Mas media sua força a partir do sucesso do barranco em impedir do homem a vinda.
Ele sabia que ela o temia e ele temia o temor dela, e feito folha caindo da árvore, perfurava no peito dos dois o empuxo do ar, que fazia a folha vacilar mas nunca apunhalar-se: brincavam de balanço com a própria queda: com medo de encarar a vertigem e aproveitando da brevidade do que antecede o tombo. E como neles o tombo nunca acontecia, respiravam fúnebres uma premissa obrigatória: a de estar vivo.
Mas por algum motivo comum ao peito eles não resistiram. Ele chegara lá. E ela também, na medida em que se/o permitia. Os cabelos longos da princesa agora eram levados pelo vento que vinha de outrora: ele chegara perto do seu trono, mas seria dele o seu leito?
Ele queria saber quais eram dela os problemas. Ela queria que ele não quisesse. Ele deixou claro o valor de suas intenções. O que a fez concordar. Mas concordou levando os olhos ao chão, o que fez dele arrepiar um pêlo das costas.
A princesa insistia que estava bem e muito grata por toda a ajuda. Foi quando ele a sentiu mais uma vez escorregando pelas frestas inerentes ao remorso de seguir uma natureza.
Até que cansara de brincar de pega-pega. Não chegaram que nunca ao tal do essencial: era o complexo de vaselina: ele que – com as mãos cheias de óleo – infringia no abuso do impalpável; ela que, antes mesmo de saber-se, já escorria pelos dedos ensebados, e o que era um crime: pelos próprios dedos. E o cerne de suas questões era apenas uma promessa respirada.
Confrontavam-se e não sabiam se se amavam ou se era uma tosse necessária. Talvez uma febre o atingisse, ou talvez a secura na garganta lhe servisse de anticorpos para a dor maior de exprimir-se na razão plena: estendera sua toalha e erguera seus pratos, e estava pronta a refeição, aquela em que se despede numa fúria gasosa, com a canela trêmula e a emoção em carne viva. Fez o que era necessário, quando a voz o ultrapassava e os pensamentos lhe impeliam:
– Foge, princesa, foge. Foge que de teu espaço restará a minha marca: e não escaparás do que tenho a oferecer-te: minha ausência. Foge, menina, recalcitrante do medo, escorrega pelo inevitável – brinca com os olhos espantados, e o coração intolerante. Foge e some do que pregas, mas não anseia mais que donde turvam os olhos, pois incompreensível seria não ter no corpo o próprio limite. Tua fuga é meu encontro e me faz no teu jazer: é agora nosso encontro: olha nos meus olhos e firma-te, crava neste chão tuas pegadas: e jamais morreremos por um vão qualquer: nesse instante não fingirás de princesa e serás o que quiser. Engole-te e assume a carne fria que tange tuas madrugadas estancadas: sê um sopro e arrepia minha pele, sê uma dor e encrava meus anseios, mas sê mas fuga e te depara contigo. Abraça-me que te reparo; mas o essencial está às costas, então, foge, menina, que do outro lado teu legado clama. Foge, menina, cresce.
O pai a encarou, acenou um “sim” com a cabeça, e, levemente, com os lábios comprimidos, ensaboou as mãos.